Este é um disco que, afinal, é um livro. O projecto Sete Lágrimas já nos habituou a um percurso original, feito entre música antiga, sacra, contemporânea e étnica – e música que é tudo isso ao mesmo tempo, sem se encerrar em fronteiras estéreis. Desta vez, oferece-nos um disco que pode ser ouvido em várias plataformas digitais – sem existência física – e que depois pode ser «lido» no livro que reúne textos, imagens, poemas...
Neste disco, ao duo (Filipe Faria e Sérgio Peixoto) juntam-se Silke Gwendolyn Schulze, na flauta dupla, charamela e flauta; e Emilio Villalba, na vihuela de arco, cítola, harpa, saltério, alaúde e sinfonia. E ainda, na parceria para a concepção científica do livro e disco, Blake Wilson (Dickinson College, Los Angeles, Califórnia) e Manuel Pedro Ferreira, do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, da Universidade Nova de Lisboa.
A opção foi «fazer nascer novas contrafacta», como explica Filipe Faria no livro, um objecto esteticamente belíssimo e imprescindível para se ouvir bem o disco. Ou seja, falamos do «processo histórico de substituição de um texto por outro sobre uma determinada melodia, propondo uma relação umbilical nova (ou mesmo potencial) entre estes textos e estas melodias».
O que aqui se nos oferece são as Laudas de André Dias de Escobar (c.1348-1450/51), cuja obra tem sido investigada por Pedro Ferreira. Uma vida rica e preenchida a deste monge e mestre em Teologia formado em Viena de Áustria em 1393: abade do Mosteiro de Santo André de Rendufe, comendatário de Rendufe e S. João de Alpendurada, bispo de Ciudad Rodrigo (Espanha, 1410), Ajaccio (Córsega, 1422-1428) e de Mégara (Grécia, 1428), professor universitário, autor de vários tratados «com grande difusão na Europa medieval, canonista insigne, conselheiro de papas, viajante infatigável, culto, erudito, homem de letras e de virtudes».
A música de André Dias confirma esta visão larga: as Laudas e cantigas spirituaaes, e orações contemplativas, do muyto sancto e boom deus Jhesu, Rey dos çeeos e da terra; e da muyto alta e gloriosa sua madre, sempre virgem sancta Maria sucedem a três décadas passadas na Cúria Romana.
A longa peça com que abre o disco – Adorote oo sancta vera cruz (André de Escobar) sobre a melodia de Oimè lasso (Laudario di Cortona), ambas de tema penitencial – propõe andamentos melódicos que por vezes soam às Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, e em nada lhe ficam a dever, seja na qualidade melódica, musical ou rítmica. Na penúltima das sete composições – Salve Virgo preçiosa (Escobar) sobre Co la madre del beato (Laudario di Firenze) – a sonoridade é quase oriental, quase contemporânea, mostrando mais uma vez que a música não só não tem fronteiras, como as deixa de modo indubitável no domínio das coisas absurdas. Nas restantes peças, sejam as vozes solitárias, apenas os instrumentos ou vozes e instrumentos juntos, temos sempre essa pedra lapidada e preciosa que constitui mais este disco/livro dos Sete Lágrimas. Imprescindível!
Título: Loa
Autor: André Dias de Escobar
Intérpretes: Sete Lágrimas
Edição: Arte das Musas
Disponível nas plataformas digitais e em www.artedasmusas.com/loa