Faz sentido ainda tocar e cantar uma versão do Requiem, de Mozart (1756-1791), diferente das já conhecidas desta obra tantas vezes executada e gravada? Jordi Savall e os seus agrupamentos La Capella Nacional de Catalunya e Le Concert des Nations decidiram fazê-lo pela segunda vez, depois de uma primeira edição em 1991. O resultado, como acontece com tudo aquilo (em) que Savall toca, só podia ser ouro.
Esta versão do Requiem, explica o maestro e compositor catalão, tenta aproximar-se o mais possível das condições de execução da época. As modulações, o contraponto, a sintonia das vozes, o ritmo compassado ou mais solto consoante os movimentos que escutamos, tudo se conjuga para podermos escutar uma versão que confirma a obra de Mozart como uma das criações sublimes de toda a história da música, imbuída aliás de uma profunda espiritualidade.
Encomenda do conde austríaco de Walsegg, Herr Franz, que quis homenagear desta forma a sua jovem mulher que morreu aos 21 anos, o Requiem foi composto com Mozart também atacado pela doença, que não o deixou acabar o Requiem – ele seria finalizado por Joseph von Eybler e Franz Xaver Süßmayr (que intervieram pontualmente em vários andamentos, tendo este último composto inteiramente o Sanctus, Benedictus e Agnus Dei).
Num dos textos de apresentação desta edição, Savall dirime as estéreis polémicas acerca da filiação do criador do Requiem na Maçonaria ou no Iluminismo anticlerical. «Nem o anticlericalismo da Maçonaria, nem mesmo as tendências fortemente anti-religiosas do Iluminismo destruíram a sensibilidade religiosa de Mozart», escreve o maestro catalão. O compositor austríaco «não precisava nem de convicção dogmática nem de prática cristã fervorosa para se comover com certos mistérios do cristianismo», acrescenta. E Jordi Savall resume: «Graças ao seu génio, Mozart pôde exprimir, através deste texto da liturgia cristã, todos os estados de alma que vão do medo do Juízo (Dies irae) à esperança na clemência de Deus (Kyrie), da angústia pelo sofrimento inútil (Recordare) à certeza de um além cheio de luz (Lux aterna, luceat eis). Um lamento fúnebre, mas sobretudo uma oração extrema implorando a misericórdia divina (“Não te afastes no momento da minha morte”), deixa aberta a esperança de uma nova vida.»
A perfeição desta versão cruza-se com a própria biografia de Jordi Savall: como o próprio conta, foi a escutar o Requiem que teve a «certeza íntima do caminho que devia seguir: não deixar de trabalhar para dominar e partilhar essa luz que dá sentido à vida e alimenta o nosso espírito».
É essa lux æterna que aqui temos neste disco. Como escreve ainda Jordi Savall: «Raramente uma obra musical foi tão intensamente marcada pelo génio, pela expressão, pela fé e pelo sofrimento de um ser humano.»
Título: Mozart – Requiem
Intérpretes: La Capella Nacional de Catalunya e Le Concert des Nations; dir. Jordi Savall
Edição: Alia Vox | Disponível nas plataformas digitais