Uma Paixão fora de época e em fim de Verão? É verdade que, para os cristãos, cada domingo condensa o essencial do mistério do Cristianismo. Esta Paixão – em rigor, Officivm Hebdomadæ Sanctæ, ou Ofício da Semana Santa, de Tomás Luis de Victoria (Ávila, 1548) – celebra a Paixão e Morte de Jesus na sua completude: Domingo de Ramos, Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira Santa e Sábado Santo (no século xvi – a obra foi composta em Roma, em 1585 –, a dimensão da Ressurreição era ainda secundarizada na liturgia).
Logo desde o início, com as cinco peças para o Domingo de Ramos, percebemos que estamos perante uma obra-prima da música, composta para ser cantada na Semana Santa, no contexto de uma liturgia católica que celebra o acontecimento fundante do Cristianismo. Numa entrevista que lhe fiz em Janeiro de 2010, o maestro e compositor Jordi Savall avisava contra a fruição da arte apenas pela sua dimensão estética, desligando-a do contexto para o qual foram criadas: quando a música é reduzida à estética, acaba-se em Auschwitz, dizia, numa alusão aos nazis que escutavam grandes obras musicais enquanto torturavam e matavam.
Savall coloca esse mesmo problema na apresentação deste triplo disco, por meio de várias perguntas: como interpretar uma composição associada ao culto da Contra-Reforma católica, revelando a sua beleza e espiritualidade, sem a desligar do contexto litúrgico que a motivou? Que essência tem esta música para ainda nos comover e emocionar profundamente quatrocentos anos depois? Como captar a densa mensagem e sentido espiritual que nos transmite esta obra-prima de Tomás Luis de Victoria?
A liturgia, lembra Rui Vieira Nery noutro dos textos, foi um dos âmbitos fundamentais da resposta católica à Reforma protestante. Tendo a Paixão como tema, esta Paixão reflecte a austeridade absoluta e o despojamento total que se traduz na paixão e na morte, mas revela igualmente uma travessia das trevas para a luz, na expressão feliz de Maria Bartels (e as trevas eram literais: no ofício da Semana Santa, as orações de matinas e laudes eram rezadas com as igrejas praticamente às escuras, como recorda Nery).
Três notas finais: a qualidade dos textos de introdução, na linha do que as edições da Alia Vox já nos habituaram, dando um excelente panorama do tempo, do compositor e da obra; a filiação bíblica dos textos usados por Victoria e outros compositores contemporâneos (à semelhança do que Bach fazia no âmbito protestante), traduzindo a importância do texto sagrado também no campo católico, mesmo se em latim; e a possibilidade de Victoria e Teresa d’Ávila se terem conhecido, como notam alguns historiadores e Josep Maria Gregori i Cifré refere. O que pode ser mais um elemento a confirmar a imensa beleza estética, litúrgica e mística desta obra maior.
Título: Passion – Officivm Hebdomadæ Sanctæ
Intérpretes: La Capella Reial de Catalunya; Hespèrion XXI; dir.: Jordi Savall
Edição: Alia Vox