O sagrado e o divino são indizíveis, mas também inseparáveis da condição humana. Por isso, recorremos ao simbólico para tocar fugazmente tais mistérios intangíveis. Este disco fala disso mesmo, tomando o Codex do mosteiro cisterciense feminino de Santa María de Las Huelgas (Burgos). Viajamos na companhia de símbolos como o favo de mel e o leite, que traduzem a feminilidade e a Virgem – e que no século IX estão também nas espiritualidades judaica e muçulmana para falar «da jornada interior» e do «encontro da alma e união com Deus», como explica Jordi Savall na apresentação. Mas vamos também com o Sol e a Lua, cordeiros, pombas e peixes, águias, moscas (ligadas ao Diabo), pelicanos (símbolo do sacrifício de Cristo) e dragões (guardiães do mundo conhecido). A viagem remete para o Physiologus, o mais antigo bestiário cristão conhecido, escrito talvez no século III, na Síria, que inspirou artistas e teólogos, traduzindo na arte a realidade «reflectida misticamente e velada». Uma viagem fascinante também pela expressividade musical das peças aqui reunidas, que traduzem o início da revolução da Ars nova e que, na época de afirmação das línguas nacionais, «marca o momento em que a música se tornou a verdadeira língua comum da Europa», como escreve Savall. Uma fascinante viagem, uma enorme contemplação artística.
Título: Codex Las Huelgas
Intérpretes: La Capella Reial de Catalunya e Hespèrion XXI
dir. Jordi Savall
Edição: Alia Vox | vgm@plurimega.com
No disco Codex Las Huelgas, Jordi Savall cita o teólogo Raimon Pannikar: «A floresta do misticismo não se penetra facilmente. Não há caminhos batidos. O último véu da realidade não pode ser levantado. O misticismo observa e revela.» A frase ajusta-se a este disco: Thunder é uma homenagem aos deuses do trovão das mitologias da Escandinávia, Japão, Geórgia (Ibéria caucasiana), América Latina, China e Extremo Oriente, Grécia, Suméria e povos eslavos. «Como fenómeno natural dramático e alarmante, claro que as culturas criariam os seus deuses para aplacar raios e trovões», lê-se na apresentação. Mas a primeira inspiração de Stephen Micus para este disco foi um instrumento – a longa trombeta chen dung –, que o compositor descobriu num mosteiro tibetano, nas suas viagens ao Oriente: «Sempre que podia ouvia a música ritual e cerimonial. Música que parece atemporal, antiga e moderna ao mesmo tempo.» A chen dung tem um som grave e rosnado, que marca as «cerimónias mais significativas e profundas», recordando a incapacidade humana de dominar a Natureza e o desejo de a acalmar. O poder dos instrumentos (do Tibete, Índia, Birmânia, Bornéu, Sibéria, Japão, América do Sul, Gâmbia, Namíbia, Suécia e Baviera) e da sua capacidade telúrica é, aliás, uma espantosa marca deste disco. Uma música que nos liga à terra.
Título: Thunder
Autor e intérprete: Stephan Micus
Edição: ECM