Uma pequena-grande antologia de orações da antiga liturgia cristã, traduzidas por José Tolentino Mendonça e Joaquim Félix de Carvalho há duas décadas, intitulava-se O Dom das Lágrimas. Incluía preciosidades como estas: «Deus omnipotente considera favorável estas orações e alaga nossos olhos com rios de lágrimas que apaguem as flamas dos incêndios merecidos [...] digna-te dar em abundância luz da inteligência verdadeira a estes submissos servos lágrimas aos olhos contrição ao coração até que purificados do actual luto e da tristeza espiritual da morte eterna nos afastemos como de uma ruína.» Este Ars Lachrimæ, último disco do instrumentista Enrike Solinís, poderia bem ser a tradução musical de várias dessas orações, no seu tom meditativo, intimista e elegante, que a suavidade e introspecção do alaúde permitem. Com obras de Johann Sebastian Bach, Johann Jakob Froberger e Dietrich Buxtehude, este é um disco perfeito para acompanhar este tempo de sabor penitencial para os cristãos, mas também cheio de capacidade regeneradora. Apaziguador e regenerador, como a arte das lágrimas.
Título: Ars Lachrimæ
Autores: Johann Sebastian Bach, Johann Jakob Froberger e Dietrich Buxtehude
Intérprete: Enrike Solinís
Edição: Alia Vox | vgm@plurimega.com
Numa recente entrevista ao 7Margens, a moçambicana Selma Uamusse recordava que aos 12 anos em Lisboa, para onde emigrara com a família, sentiu que Deus lhe falava e precisava de saber mais sobre ele. Foi encaminhada pela mãe para uma catequista que a «fez ficar completamente apaixonada pelo Novo Testamento». Reviu-se «completamente na vida de Jesus» e pensou: «Quem é este homem inspirador de que ninguém me tinha falado?» É esta paixão que Selma transmite com a sua voz prodigiosa, a lembrar divas africanas (Miriam Makeba, Cesária Évora) ou afro-americanas (Ella Fitzgerald, Aretha Franklin, Billie Holiday, Nina Simone, Josephine Baker...). Mas a sua música, o ritmo avassaladoramente enérgico e a força dos poemas têm também uma força tremenda. Neste Liwoningo, tudo isso está presente, a par das mensagens fundamentais: a força do amor e da fé em Deus, a recusa absoluta da guerra, a riqueza da diversidade (inclusive musical). Como em Khanimambo Liwoningo, que dá título ao disco: «Se a tua luz é mais que a luz do Sol/ Se a tua luz é candeia p'ros meus pés/ Se a tua luz me guia e me aquece/ Só quero aqui ficar, contigo estar.» Ou na recusa total do uso das armas em No Guns ou ainda na homenagem à Mama, às mães: «Sabemos tudo o que fizeste e passaste, mamã; vi o que tiveste de sofrer [...] E sempre que saías de casa eu perguntava: Para onde vais, mamã? – Vou encontrar dinheiro para que possamos comer.» Um banquete!
Título: Liwoningo
Autora e intérprete: Selma Uamusse
Disponível nas plataformas digitais