Foi esse o ambiente de trabalho e de vida do padre Pierluigi Maccalli, um missionário italiano da Sociedade das Missões Africanas que trabalhou numa missão de portas – literalmente – abertas, longe de qualquer cenário minimamente interessante para os órgãos de comunicação social habituados ao brilho dos poderosos. Tudo correu bem até chegar o dia 17 de Setembro de 2018, quando foi raptado por um grupo jiadista em Bomoanga, no Níger. Foi libertado no dia 8 de Outubro de 2020, no Mali. No passado dia 1 de Agosto esteve em Fátima para agradecer a Maria a sua libertação do cativeiro.
Quem é o padre Pierluigi Maccalli?
Nasci na cidade italiana de Crema. Entrei no seminário da minha diocese e quando fui ordenado, em 1985, já estava orientado para a missão. Em 1986, depois de um ano a aprender francês e a viver numa comunidade da Sociedade das Missões Africanas (SMA) em Itália, fui para a Costa do Marfim, onde trabalhei durante dez anos. Em 2007, depois de um tempo em Itália na animação missionária, parti para o Níger, onde fiquei durante onze anos, até 17 de setembro de 2018, quando fui raptado.
De onde vem essa orientação para a missão?
Desde os primeiros diálogos com o meu director espiritual, ele orientou-me para uma escolha diferente da vida diocesana. Falei com missionários, o meu irmão mais velho esteve em contacto com a SMA no meio do seu itinerário vocacional... Conheci a comunidade provincial e gostei do ambiente, do clima familiar e da missão em África. Tudo isto orientou a minha escolha. Desde o início que senti que esse era o meu caminho.
O que fez na Costa do Marfim?
Estava no Noroeste, numa missão missionária em Bondoukou, onde trabalhei numa paróquia muito extensa. Como era o mais novo da comunidade, cuidei das aldeias mais remotas. Foi um trabalho de primeira evangelização, de primeiro anúncio do Evangelho no meio da realidade rural da paróquia.
O seu segundo destino africano foi o Níger. Como foi a sua experiência nesse país?
De acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano, o Níger ocupa o último lugar do continente, mas a nossa escolha é estar sempre com os mais abandonados e necessitados de África. Do ponto de vista eclesial, é também uma realidade muito pobre. Foi por isso que expressei a minha disponibilidade de ir para lá depois de o bispo de Niamey ter pedido missionários para a sua diocese. Fui enviado para a missão de Bomoanga, no Sudoeste, na fronteira com o Burquina Faso. A minha escolha sempre combinou a evangelização e a promoção humana, e este contexto era o ideal para isso.
Por onde começou?
Comecei a ouvir as necessidades das pessoas e a principal era a da água. As mulheres tinham de se levantar às quatro da manhã para irem buscá-la. Alguns anos mais tarde, conseguimos abrir um poço em Bomoanga, e depois continuámos noutras cidades da região. Então avançámos com a saúde. A desnutrição é muito elevada, assim como a mortalidade infantil, a escolarização é quase inexistente... Se tivesse de resumir qual foi o meu compromisso ali, direi que foi uma pastoral social conjugada, em italiano, com três esses: salute (saúde), scuola (escola) e sviluppo (desenvolvimento).
Como é a comunidade cristã?
É muito pequena. Os cristãos são uma minoria, mas muito apreciados. Quase 98% das pessoas no Níger são muçulmanas, mas as pequenas comunidades cristãs, cerca de quinze na paróquia, constituídas por muitos jovens, colocaram o seu coração no Evangelho e estão felizes.
O que aprendeu nos dois anos de cativeiro?
O deserto deu-me três presentes. O primeiro é a comunhão com muitas vítimas inocentes. O segundo, um grande silêncio que te escava e te obriga a entrar no mais profundo de ti mesmo. O terceiro, aprender a ir ao essencial, que não são as coisas, que não são as situações... No que diz respeito ao exterior, dormi no chão, comi o que lá estava, mas o essencial é a relação (com o outro), é a comunhão... O essencial é a paz, não a guerra... Todos estes valores foram um presente desta experiência. Também mudou a minha forma de viver a fé, a minha forma de pensar sobre a missão e acho que também mudou a imagem que eu tinha de Deus. Gritei-lhe: «Porque me abandonaste?» Passei pela noite escura do silêncio de Deus. Mas agora acho que é uma passagem obrigatória para nos abrirmos para outro horizonte, o de um Deus que não está feito à medida das nossas exigências, mas que está presente de uma forma que não corresponde à nossa forma humana e particular de ver as coisas. A missão também mudou para mim. Depois do cativeiro, vi coisas que não podia imaginar: campanhas de sensibilização, marchas e orações que foram organizadas, e percebo que a missão é de Deus. Depois de vinte e um anos de vida africana, de fazer projectos... Se eu comparar esse período com estes dois anos, posso dizer que foram dois anos roubados à missão, mas talvez tenham sido os dois anos mais frutíferos da missão.
Como foi a sua vida sacerdotal durante esse tempo?
Não consegui comungar durante 752 dias, mas sempre celebrei missa, especialmente aos domingos. Afastava-me e celebrava no altar do deserto. Pensava num texto do Evangelho, estendendo a oração universal, tendo presente todas as periferias do mundo, as pessoas que amo. Depois, a consagração, sem pão e sem vinho, consistia em repetir as seguintes palavras: «Este é o meu corpo oferecido, este é o meu sangue derramado. Não tenho mais nada para lhe oferecer, Senhor.» E terminava com a oração do Pai-Nosso e a bênção para África, para que seja uma África de paz.
No período entre a Costa do Marfim e o Níger fez animação missionária na Itália. Como podemos encorajar as pessoas de hoje, vocacionadas ou não, a optarem pela missão?
Não tenho de dar lições a ninguém, mas há uma coisa que quero salientar: temos de dar muito espaço à escuta, ao acolhimento, ao encontro, porque não é o desencontro, mas o encontro, que nos faz comunicar, viver como seres humanos; devemos insistir na dimensão humana, porque a missão é humanização. O meu professor François Varillon disse que «o que o homem humaniza, Deus diviniza-o». Não temos de fazer grandes coisas, nem milagres, o que temos de fazer é humanizar as nossas vidas. Quanto mais humanos somos, mais entramos nessa dimensão de um Deus que se faz homem.
Acho que esta humanização pode ser o caminho que abra ao espaço de Deus. Depois, devemos permanecer em silêncio.
Porque não respondem os jovens?
Há muito barulho no ambiente e, todavia, há também muita violência nas palavras. Quando regressei, percebi a violência da linguagem no mundo da política, do desporto...
Quantas palavras violentas saem da nossa boca! Temos de desarmar a linguagem porque, caso contrário, não seremos capazes de desarmar o coração. Depois de uma palavra violenta vem sempre a reacção de uma palavra ou acção violenta. Se desarmarmos as palavras, também as nossas acções diárias ficarão desarmadas.
A dada altura disse que Deus fez o seu cativeiro frutífero.
Muito mais do que pensava. Pelos ecos e atenções que tenho tido, pelas pessoas que se interessaram pela missão, vejo que o Senhor abriu portas e caminhos com a pequena missão de Bomoanga, que não aparece no Google Maps, e com um missionário desconhecido como eu... Tudo isto tem sido a oportunidade para algo muito grande.
Finalmente, sabe alguma coisa da irmã Cecilia Narváez?
Esta missionária continua raptada depois de quatro anos e meio [a religiosa colombiana, pertencente à congregação das Franciscanas de Maria Imaculada, foi sequestrada no Mali em 7 de Fevereiro de 2017, por um grupo terrorista ligado à Al Qaeda]. É mulher, religiosa e está sozinha... É demasiado tempo.
Disseram-me que a sua saúde está a deteriorar-se, pelo que peço que seja libertada o mais rapidamente possível, porque a sua situação está a piorar.