Caminha normalmente. Nada sugere que, há sete meses, tenha sido atingido por quatro balas de uma Kalashnikov nas pernas. Felizmente, as balas não tocaram nos seus ossos, nervos ou articulações. Este providencial – quase milagroso – acontecimento não foi o único: «Um avião da Cruz Vermelha estava disponível no dia do ataque para me transferir para um hospital em Nairobi, Quénia. A Providência tornou ainda possível que, rapidamente, se encontrasse um dador de sangue compatível e, assim, fazer a transfusão que eu precisava. Providencial, também, foi que uma das pessoas que me atacou perdeu o seu telemóvel no meu quarto, o que forneceu pistas que permitiram descobrir os autores do ataque e lançar as bases para que algo semelhante não volte a acontecer. Muitas circunstâncias felizes para me fazer ver que o Senhor estava no domínio do que me aconteceu», sublinha Christian Carlassare, bispo eleito de Rumbek.
«Eu compreendi – refere D. Carlassare – que o ataque foi para me intimidar, para me assustar e para me manter afastado de Rumbek. A minha impressão é que, durante os dez anos em que esteve vacante, a diocese foi ficando refém de um pequeno grupo de poder, com interesses específicos, a quem a minha presença incomodou.»
Poucos dias após o ataque, 41 pessoas foram presas. Seis estão actualmente na prisão e cerca de 20 estão acusadas, incluindo alguns padres e agentes pastorais. O processo judicial continua e ainda não há sentença, pelo que o bispo eleito apela à prudência, consciente da situação incerta em que se encontra. «Como posso trabalhar se ainda não está tudo esclarecido? Em qualquer caso, em diálogo com a nunciatura, estamos à procura de uma data para regressar ao Sudão do Sul. Pela minha parte, estou determinado a levar esta responsabilidade até ao fim, como um pai que não pode abandonar os seus filhos. O ataque teve lugar no Domingo do Bom Pastor e guardo na minha mente este ícone do Bom Pastor que se preocupa e dá a vida pelas suas ovelhas.»
Perdoar
Embora esteja consciente da oposição inevitável que qualquer pessoa que exerça autoridade, como um bispo, pode enfrentar, D. Carlassare nunca imaginou que seria alvo de uma acção tão violenta. No entanto, impressiona a sua forma de interiorizar o que aconteceu. «Desde o primeiro momento, abandonei-me nas mãos de Deus, sabendo que Ele poderia beneficiar a missão com o que me aconteceu. Nos primeiros dias acordei a pensar que tudo tinha sido um pesadelo, mas quando fui entrevistado na cama do hospital, do meu coração brotaram palavras de reconciliação e perdão que eu não tinha preparado. Conceder o perdão naquele momento foi para mim uma libertação do medo, ressentimento, desconfiança e desconforto e, assim, continuar a acreditar no processo que a Igreja está a levar a cabo no Sudão do Sul, para que este povo possa viver em paz. Com o passar do tempo, vejo o que me aconteceu como uma forma de eu carregar na minha carne as feridas deste país. Demasiados sul-sudaneses sofrem injustamente com a violência, são atacados nas estradas ou forçados a fugir das suas terras, por isso, é para mim um dom fazer causa comum com a situação de tantas pessoas.»
O ciclo de violência
O conflito interno no Sudão do Sul rasgou o tecido social e dividiu grupos étnicos. Um acordo de paz foi assinado em 2019 entre o Governo e o grupo maioritário da oposição, mas ainda há muito a fazer. Para Christian Carlassare, «a assinatura do acordo é um passo em frente para a paz porque permitiu partilhar alguns poderes e cargos governamentais, mas é necessário passar de um acordo entre “grandes actores” para um acordo que chegue aos territórios onde os conflitos continuam e as feridas ainda estão abertas. Há ainda quatro milhões de refugiados ou deslocados do Sudão do Sul que perderam as suas terras, agora ocupadas por milícias ou grupos não nativos da área. As armas estão em todo o lado e alguns utilizam-nas de formas inaceitáveis. Além disso – continua o missionário comboniano –, certos grupos estão a tirar partido dos recursos de todos recorrendo a uma corrupção terrível. Fala-se do Sudão do Sul como de uma cleptocracia, enquanto a população é vítima do roubo dos seus recursos e privada da possibilidade de desenvolvimento.»
Neste contexto, a Igreja tem uma missão fundamental para quebrar o ciclo de violência e permitir que o país se levante: «Está presente em todas as comunidades e fala o Evangelho na língua de cada povo, com uma mensagem comum de paz, unidade e reconciliação. É urgente passar da narrativa do medo para uma narrativa positiva, que conduza à reconciliação.» A este respeito, D. Carlassare considera importante o gesto profético do Papa Francisco em 2019, quando beijou os pés dos líderes do Sudão do Sul. «Muitos perguntaram-se como foi possível que o Santo Padre se curvasse diante destes “pais da pátria”, que não são santos. Foi um gesto forte para pressionar os líderes sul-sudaneses a porem de lado o seu ego e aceitarem um compromisso, mas também para os fazer compreender que a única autoridade que pode ser realmente uma ajuda para o povo é a autoridade que está disposta a servir.»
Ultrapassar inimizades
O P.e Christian chegou ao Sudão [o Sul tornou-se independente em 2011] aos 28 anos de idade com o entusiasmo da sua recente ordenação. Foi enviado para trabalhar entre o povo Nuer na comunidade de Old Fangak, que os Missionários Combonianos tinham aberto nove anos antes. Durante quinze anos, sem interrupção, realizou o seu serviço pastoral entre o povo Nuer, visitando as jovens comunidades cristãs e formando agentes pastorais.
Enquanto estava em Old Fangak foi nomeado bispo de Rumbek, uma diocese onde os Dincas são o grupo étnico maioritário, algo que não preocupa muito D. Carlassare, embora reconheça que o conflito do Sudão do Sul criou muita desconfiança entre os Nueres e os Dincas: «Penso que as pessoas não identificam o missionário com um determinado grupo étnico. Trabalhei entre os Nueres, mas não sou um nuer e trabalharei entre os Dincas em Rumbek sem ser dinca. Nós, missionários, devemos ser pessoas abertas e trabalhar na Igreja para diminuir a inimizade entre grupos. Os Dincas sabem que eu amo o povo Nuer, mas também sabem que os posso amar da mesma forma.»
Dom e desafio
A diocese de Rumbek é um desafio para o jovem prelado. Foi criada em 1975, mas teve de ser encerrada durante os anos de guerra civil entre o Norte e o Sul do Sudão. Devido ao conflito, a população sofreu com a fome durante a década de 1980. Nos anos 1990, a diocese foi reaberta com a presença do bispo comboniano D. Cesare Mazzolari, que revitalizou todas as estruturas eclesiásticas. «Era verdadeiramente um santo, um visionário e um profeta, e levantou a Igreja do ponto de vista pastoral e social», diz com convicção. A morte de D. Mazzolari, em 2011, deixou a sede vacante até à nomeação de D. Carlassare, que vê o trabalho realizado pelo seu antecessor como a razão da sua eleição. «Penso que a Santa Sé olhou para os Missionários Combonianos porque somos uma congregação estável e bem estabelecida no país, e que pode dar continuidade ao trabalho de D. Mazzolari. Não foi tanto a minha pessoa em concreto, mas a confiança nos Missionários Combonianos, que me trouxe a Rumbek.»
A memória de D. Mazzolari faz com que a grande maioria dos católicos de Rumbek espere a chegada do novo bispo com expectativa, algo que D. Carlassare vê como uma «espada de dois gumes», porque muitos pensam que «um bispo europeu pode dar esperança ao desenvolvimento da diocese, algo que deve ser continuado, mas nunca sem a contribuição dos cristãos». D. Mazzolari realizou numerosos projectos sociais com ajudas que provinham do estrangeiro, razão pela qual o seu sucessor insiste na necessidade de «passar para uma Igreja que cresça com os recursos disponíveis no local, que conte com participação de todas as pessoas».
Ao concluir a entrevista, D. Carlassare convidou os leitores da Além-Mar a superar a imagem negativa de África que, frequentemente, transparece nos meios de comunicação social. «Devemos saber olhar para o continente com olhos mais abertos, com um grande coração, e descobrir tudo o que a África aporta à nossa velha Europa. Não só recursos, que infelizmente causam conflitos em África, mas sobretudo a sua cultura e a sua verdadeira riqueza: as pessoas.»