Os mitos do Génesis
No título deste livro, Criação Divina sem Pecado Humano – uma história com sentido: Génesis 2-3, podia bem encontrar-se a palavra «original». Não seria neste caso associada ao pecado mas ao sentido, indicando o original significado das palavras do primeiro livro da Bíblia.
As descrições dos primeiros tempos espelhadas no livro do Génesis foram durante demasiado tempo alvo de leituras literais e descontextualizadas. «Uma panorâmica da sua interpretação até ao presente mostra que o insucesso em entendê-las se deve muito ao facto de procurar só nelas a solução dos seus problemas, sem as iluminar bastante com a luz de textos paralelos do seu meio cultural e sem tirar todas as consequências desse conhecimento.» Foi precisamente este iluminar da interpretação do relato bíblico o propósito do P.e Armindo Vaz para esta obra – «quase impossível há 50 anos por falta de ferramentas hermenêuticas adequadas para determinar o género literário do texto».
O carmelita teresiano e professor catedrático leva ao seu leitor a interpretação pormenorizada dos temas e motivos dominantes indo à descoberta do seu significado. Analisa cada frase das descrições feitas nas primeiras páginas do livro do Génesis e aborda tanto a «construção da mulher a partir do lado do homem» (onde a palavra original que tantas vezes aparece na Bíblia, só ali «insólita e caprichosamente» significaria «costela») como a ideia de um Jardim do Éden como um «paraíso terreal» («inventado por uma interpretação descontextualizada e extraviada») ou ainda a «mítica» figura da serpente, representante da tentação, ou o fruto proibido ou o castigo divino pela queda no pecado.
Desta forma, o autor, analisando conceito a conceito, ideia a ideia, frase a frase, vai desconstruindo mitos, vai encaixando os escritos do livro do Génesis no seu contexto histórico e cultural para lhes perceber os significados originais. Perceber estes textos como mitos é fundamental pois só assim se lhes alcança a mensagem que pretendem transmitir, razão pela qual «a um mito não se pode contestar ou fazer perguntas que estejam fora do âmbito e intenção mitológico»; da mesma forma «a um texto de poesia não podemos fazer perguntas de ciências naturais, como a uma fábula não podemos colocar questões sobre o comportamento dos animais».
Este é um livro de teologia. É ainda assim suficientemente acessível a leigos nesta área do saber, pela forma como o autor apresenta o seu texto e vai encadeando os vários pontos que aborda. Permite ao leitor percorrer a lógica que leva à descoberta dos significados não literais que estão mesmo ali, nos textos da Bíblia (no Génesis, neste caso), e retira ao Homem a carga de um pecado que lhe seria inerente apenas por ser homem.
(Filipe Messeder)
Título: «Criação divina sem pecado humano»
Autor: Armindo dos Santos Vaz
Editor: Paulinas | www.paulinas.pt | Tel. 219 405 640
Título: «Contos espirituais da Índia»
Autor: Ramiro Calle
Editora: A Esfera dos Livros
www.esferadoslivros.pt | Tel. 213 404 060
Compilação de contos que o autor foi ouvindo e que reuniu ao longo de dezenas de viagens à Índia. Estas narrativas fazem parte do património espiritual da humanidade e, sublinha o autor, «têm a maravilhosa capacidade de tocar a mente e o coração de quem as lê».
Título: «Peregrino da Liberdade Dalai Lama XVI»
Autor: Ricardo de Saavedra
Editora: Quetzal
www.quetzaleditores.pt | Tel. 217 626 000
Com fontes locais e documentos inéditos, Ricardo de Saavedra – o primeiro jornalista português a entrevistar o actual Dalai-Lama – elaborou uma biografia minuciosa e completa, mas com um estilo directo e simples, do líder espiritual do Budismo Tibetano.
Título: I Love All Beauteous Things
Intérprete: The Choir of St. Clement’s Episcopal Church; dir.: Douglas Charles Shambo
Por vezes, fazem-se assim descobertas casuais: do lado de lá do Atlântico, chega uma obra que merece destaque. O Coro de S. Clemente da Igreja Episcopal de Saint Paul (Estado do Minnesota, no Centro-Norte dos EUA, na fronteira com o Canadá) regista aqui uma selecção de vinte peças do seu repertório. O coro conta já com quase 125 anos (foi fundado em 1895) e tem, na sua história, um conjunto de músicos virtuosos e de qualidade, de acordo com o texto que apresenta o disco e a história do coro. Não faltaram mesmo pormenores divertidos, como o organista originário da Irlanda do Norte (George A. Thornton) que, quando achava que alguém do coro estava a desafinar, tocava o órgão com mais força... Mas neste disco vale a música do excelente repertório, que inclui peças de gregoriano e cantochão até algumas contemporâneas, passando por criadores dos séculos xv, xvi e seguintes (Tomás Luis de Victoria, Josquin des Pres ou, mais perto de nós, Anton Bruckner ou Benjamin Britten...). As composições contemporâneas são de grande qualidade e um exemplo de excelente música litúrgica, aliando a qualidade poética (com forte inspiração ou mesmo leitura bíblica) à qualidade melódica, como desde há muito é timbre das comunidades protestantes ou, como neste caso, anglicanas. Servem os exemplos do Magnificat, de Orlando Gibbons, do Salmo 145 musicado pelo director do coro, ou da peça que dá título ao disco, em que o órgão e as vozes estabelecem um intenso diálogo meditativo.
(António Marujo)
Título: Le Testament Symphonique – Symphonies 39, 40 & 41
Intérpretes: Le Concert des Nations;
dir. Jordi Savall
É possível falar de um testamento espiritual de um músico que fez parte da Maçonaria? Jordi Savall escolheu O Testamento Sinfónico para título deste duplo disco, mas pode afirmar-se também que estamos diante de um legado de «imensa envergadura espiritual», como escreve Víctor García de Gomar na apresentação (ou não estivéssemos também a falar do autor daquele que é talvez o Requiem mais intenso da história da música). As três últimas sinfonias compostas por Mozart – que o fez em apenas seis semanas, durante o Verão de 1788 (com 32 anos, três anos e meio antes de morrer) – estão também entre as suas obras mais conhecidas. Mozart acabara de ter pouco êxito com a estreia do seu Don Giovanni e, coberto de dívidas, refugiara-se numa pequena casa da periferia de Viena, num período “de maturidade criativa” e de “desamparo”, define Savall. Não se sabe se Mozart escreveu as sinfonias por encomenda ou por impulso pessoal – nem, sequer, se assistiu à estreia das obras ainda em vida. Mas nelas vêm ao de cima os jogos de opostos: “luz e sombra, serenidade e melancolia”, na expressão de García de Gomar, mas poderia acrescentar-se a intensidade dramática que aqui também se regista e com que Mozart tantas vezes expressava a sua música, reflectindo os altos e baixos da sua vida pessoal. À genialidade da música soma-se o primor da execução de Le Concert des Nations e temos todas as razões para dedicar tempo a escutar estes discos.
(António Marujo)