Maria Valéria Rezende nasceu numa família de escritores e artistas, tanto do lado do pai quanto da mãe, em Santos, São Paulo. Na casa da avó, fazia-se leitura colectiva, seja nos encontros regulares de escritores, seja com a família toda reunida na varanda e alguém a ler. As poesias do seu tio-avô Vicente de Carvalho alimentaram-lhe o imaginário.
Quando começou a ler e escrever, Maria Valéria redigia cartas à avó, em forma de narrativas. Simultaneamente, inventava heróis e escrevia livrinhos, que dactilografava e reproduzia em cinco ou seis exemplares. Em seguida, ilustrava-os e, depois, pedia à avó para costurar o miolo. Confeccionados os livros, distribuía-os como lembrança numa visita ou como presente de aniversário.
O pai de Maria Valéria era médico, daqueles que iam ver os doentes onde viviam. Aos sábados e domingos, ia aos lugares mais pobres da cidade. Então, pedia à filha que levasse um livro para ler às crianças de lá, porque eles não sabiam ler e não tinham livros.
A par disto, as freiras da escola que ela frequentava, as Cónegas de Santo Agostinho, desenvolviam um trabalho de instrução para os filhos de pescadores do litoral do Estado de São Paulo, em quilombos na Serra do Mar e para indígenas guaranis. Alfabetizavam, ensinavam puericultura, primeiros socorros e horticultura. Maria Valéria admirava-as e, nas férias, começou a acompanhá-las. Deste modo, a sua vida missionária começou cedo.
Após uma vida activa na Juventude Estudantil Católica, com 23 anos decidiu ser freira. Entre os livros mais lidos estavam a Bíblia e ela nunca duvidou que o serviço aos outros é a melhor forma de encarnar o Evangelho.
Perguntar e ouvir como método criativo
Se Maria Valéria Rezende já era conhecida por ser curiosa e por não ter medo de nada, na sua congregação religiosa, sempre que havia uma missão a desbravar, chamavam-na. Assim, praticou a educação popular em Cuba, na China, na Argélia, no México, em Timor-Leste, e entre os seus conterrâneos na periferia de São Paulo, no interior de Pernambuco e na Paraíba e, actualmente, em João Pessoa.
A base da educação popular é perguntar e ouvir, fazer o povo contar a sua própria história, pensar sobre ela e reflectir se aceita ou não o lugar e papel que lhe está definido. Inclusive para saber determinar se é ele que cria a situação em que está ou se são outros. E depois desse processo de reflexão, pode ser enxertado outro tipo de conhecimento vantajoso. O essencial é ajudar as pessoas a tomarem consciência das suas condições de vida, das verdadeiras causas, organizar-se e agir.
De tanto viajar, perguntar e ouvir, a irmã Maria Valéria carrega um mundo inteiro dentro de si: o que viveu com pescadores, camponeses, sindicalistas e presos a quem ajudou a ler e escrever. Teve de aprender línguas, a conversar, comer, entender os costumes, andar na rua, ouvir, cheirar, apanhou sustos, sofreu violência, recebeu ameaças de morte, sofreu um enfarte.
É esse o mundo que ela tem posto ao serviço da educação popular usando os seus talentos: escreve crónicas, elabora peças de teatro, produz banda desenhada, filma e cria programas para televisão. E nunca deixou de confeccionar os pequenos escritos ou obras de arte para oferecer. De facto, na clausura do seu convento, nos lugares ermos, nos tempos de espera num banco ou nos correios, ocupa-se com cinco actividades: reza, lê – porque a literatura é informativa e completa o que conhece do mundo –, escreve, desenha e faz esculturas.
Em 2002, ela ofereceu um dos seus escritos a Frei Betto, e ele apresentou-o a uma editora. E foi assim que, aos 60 anos, a irmã Maria Valéria Rezende viu publicado o seu primeiro livro, chamado Vasto Mundo, em que reuniu o que tinha escrito até então.
A escrita de Maria Valéria mistura factos reais com ficção. É franca e divertida, imaginativa e profunda. Como denominador comum, procura que o leitor se ponha no lugar dos protagonistas ou que ouça o que eles têm para lhe dizer. Ela acredita que a literatura serve para mostrar aos outros o que eles não conseguem ver por si sós. Até porque, na origem da sua escrita, está o que ela procurou para compreender. Um exemplo claro disso é o romance Quarenta Dias. É a história de Alice, uma mulher de cerca de 60 anos, viúva de um desaparecido político e professora de línguas que levava uma vida organizada em João Pessoa e se viu obrigada a abrir mão de tudo porque a filha, que morava no Sul, queria ter um filho e precisava da ajuda da mãe, para que pudesse continuar as aulas na faculdade.
Para escrever este romance, a irmã Valéria fez, durante 15 dias, o que a Alice praticou. Deambulou pelas ruas de João Pessoa, voltava para casa à noite, dormiu na estação de autocarros, no aeroporto e no hospital. E foi-se apercebendo da problemática que caracterizava as mulheres da sua geração, que foram para a rua trabalhar, criaram os filhos, desgastaram as forças, adiaram projectos e, quando chegou a hora de se aposentarem, foram convocadas para serem avós educadoras de infância, porque os filhos têm as suas carreiras e nenhuma disposição de fazer sacrifícios. Nessas andanças, percebeu também que metade do mundo é formado por gente que desapareceu e a outra metade está à procura de quem sumiu – e não só os que foram viver para a rua, mas também os que não quiseram dar notícias. O romance foi tão bem aceite e compreendido que lhe valeu, em 2016, o primeiro dos três prémios Jabuti que lhe foram entregues. Destaque também para o romance Outros Cantos, que mereceu o prémio Casa das Américas, atribuído em Cuba, em 2016. O romance mais recente é Carta à Rainha Louca, em que uma mulher pobre do século xvii desabafa e reclama sobre a realidade das mulheres brasileiras do período colonial, mas que, para Maria Valéria e os leitores do século xxi, são verdade para as mulheres de hoje e de sempre.
Os prémios mais importantes
A irmã Maria Valéria não atribui demasiada importância aos prémios literários. As melhores recompensas são outras: as mensagens que lhe chegam de pessoas a quem um livro deu ânimo; que, todos os anos, nas escolas públicas brasileiras, seja indicado um livro seu, proporcionando-lhe ir conversar com as crianças e que se organizem semanas literárias, com participação entusiasmada dos alunos; as oficinas de leitura com presos, com debates surpreendentes; e o grupo Mulherio das Letras, criado para resgatar e promover escritoras brasileiras, e que já reúne mais de cinco mil romancistas, contistas e poetisas, antes desconhecidas e com dificuldades para publicar.
A irmã Maria Valéria já tem mais de 15 obras publicadas, entre romances, poesia, contos, crónicas e textos infanto-juvenis. Quem as lê não tem dúvidas de que, para ela, escrever é algo que dá prazer.
Aos 78 anos, a freira missionária escritora tem um caderninho onde anota títulos, tramas, temas, personagens de romances que, diz a sorrir, não vai ter tempo de escrever, mas já escolheu duas escritoras que podem ser suas seguidoras. A ideia será sempre dar a voz a famílias para que falem dos seus segredos escondidos ou esquecidos.
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