Os desafios da vocação são inúmeros. O discernimento é um caminho longo que, ao contrário do que muitas vezes desejaríamos, não podemos percorrer sozinhos. Não somos auto-suficientes em nenhum aspecto da vida, mas, especialmente quando desejamos uma vida plena e realizada, esta verdade manifesta-se ainda com maior magnificência. Não há lugar para o egoísmo e o egocentrismo quando se pretende viver uma vida em abundância.
A vocação coloca-nos perante as nossas próprias limitações, perante os nossos medos e incapacidades. Contudo, porque não é algo apenas nosso, mas dom de Deus, a vocação faz nascer em nós uma pluralidade de dons que nem sonhávamos que tínhamos. Lá onde pensávamos ser frágeis, verificamos que somos fortes. Lá onde o medo nos bloqueava, somos capazes de vencer todas as barreiras. Todavia, importa ter em conta que isto da vocação não é algo dirigido a super-heróis! É, antes, algo que nos eleva e nos torna capazes de vencer todos os obstáculos, não por ganharmos superpoderes, mas por aceitarmos viver “no colo de Deus” e de mãos dadas com aqueles que, de um ou de outro modo, nos ajudam a discernir e a trilhar os caminhos da vocação.
Para melhor percebermos os primeiros passos do discernimento, lembremo-nos da história dos primeiros discípulos de Jesus: ouvindo João Baptista, sentiram-se chamados a seguir Jesus. Sem saber muito bem ao que iam, permaneciam atrás de Jesus sem saberem se este seria um caminho (vocação) para eles. Como acontece sempre no caminho vocacional, quando procuramos Deus, Ele volta-se para nós e fala-nos. Jesus também se voltou para estes discípulos e, interpelando-os, eles responderam: «Mestre, onde moras?» Uma “curiosidade vocacional!” Os discípulos não andavam atrás de dados biográficos de Jesus, mas de um caminho/orientação/sentido de vida. Jesus responde mais do que àquilo que eles perguntaram: «Vinde ver» (Jo 1,38-39). Assim começa o discernimento vocacional destes discípulos: eles passam de seguidores de Jesus a Seus companheiros! Só assim chegam à realização plena de vida e ao acolhimento pleno do dom da vocação como dádiva de vida.
Vocação: dádiva de Vida
A vocação não é algo totalmente exterior a nós, nem é algo totalmente dependente só de nós. Enquanto dom, ela é sempre dádiva de Deus. Enquanto possibilidade de realização, ela é sempre dependente do nosso acolhimento do dom. Nela encontram-se as vontades e os desejos de felicidade que nos habitam com o dom de felicidade que Deus tem para nós. No acolhimento do dom da vocação, tornamo-nos como «aquele a quem a sua vocação divina eleva acima da esfera das mais nobres e brilhantes iniciativas humanas» (Comboni, Escritos, n.º 1550). Tornamo-nos fortes, santos e capazes em Deus! Quão grande é esta dádiva que não se resume a um momento isolado!
A vocação é dádiva de vida! Ela é dom oferecido que se vai acolhendo (ou recusando) em todos os momentos da nossa existência. O discernimento inicial da vocação é já um primeiro passo para o seu acolhimento. Contudo, ele, sendo já vida, não é compaginável com a apatia e a inacção e não se reduz a um determinado período da vida. Antes, ele implica uma acção contínua para discernir aquilo que está de acordo com a vocação que recebemos/acolhemos e aquilo que, enganadoramente, é apenas vontade nossa (muitas vezes fruto dos nossos caprichos e do nosso egoísmo).
Podemos pensar a vocação como dádiva de vida na mesma medida em que podemos pensar a nossa existência. Geralmente associamos o início da nossa existência ao nosso nascimento. No entanto, sabemos que muito antes já começamos a existir no seio da nossa mãe e no projecto de Deus. Além disso, sabemos que a nossa existência só se realiza existindo, isto é, não se reduz a um determinado momento ou período de tempo. Com a vocação acontece o mesmo: podemos, até, situar algum tempo denominando-o de “tempo de discernimento”. Contudo, a vocação é dádiva contínua, discernimento contínuo... vida contínua! Daí a exigência de um “sim” contínuo, ao longo de toda a existência (ou pelo menos, ao longo da existência que queremos que seja verdadeiramente feliz!).
Vocação: geradora de Vida
Uma das manifestações mais imperiosas da vocação, além da realização humana e da felicidade, está no facto de, sendo dom de Deus/dádiva de vida, ela é sempre geradora de vida. É como uma pequena semente que acolhe a água que se lhe deita: ela não acolhe apenas o dom, ela não apenas se realiza (germinar/frutificar), ela torna-se vida para tudo quanto está à sua volta (no solo e no subsolo). Se a semente tivesse a capacidade de pensar ou de ter a percepção do que se passa à sua volta, provavelmente nem se daria conta dos efeitos do seu acolhimento do dom.
O mesmo acontece quando acolhemos o dom da vocação. Muitas vezes sentimos os efeitos imediatos disso à nossa volta (nem sempre os efeitos que gostaríamos de ver), mas somos incapazes de atingir totalmente as repercussões que Deus permite que aconteçam a partir daí. A vocação que acolhemos torna-se jardim florido: uns sentir-se-ão incomodados, porque desejariam que aí existissem outras plantas; mas muitos aprenderão sobre os efeitos do acolhimento do dom; outros verão as suas vidas transformadas pela beleza que Deus colocou diante dos seus olhos; outros, ainda, embora não vendo o jardim, glorificarão a Deus ao sentirem o seu perfume.
Negar-se ao acolhimento do dom da vocação é impedir o imergir da vida ao nosso redor! Não podemos ter a pretensão de guardar para nós toda a água fresca e cristalina que nos é dada e, simultaneamente, desejar ter um lago ou ter um jardim florido. Quando chegamos ao Outono, ouvimos muito as pessoas queixarem-se da chuva. Estas desejariam ter sempre sol e praia e passeios sem guarda-chuvas. Contudo, essas mesmas pessoas depois lamentam-se dos preços das hortaliças, da falta de fruta, da seca que leva a incêndios destruidores… Pois é. Não podemos ter tudo e, no que diz respeito à vocação, se optamos por ela, então, estamos dispostos a optar pela vida em abundância, não apenas para nós, mas para toda a Criação.
Vocação: viver uma Vida em abundância
A vocação desafia-nos à ousadia de viver uma vida plena, uma vida que, apesar dos obstáculos, se realiza e é dom e vida para todos. Certo dia li num muro da cidade: «Só se atiram pedras às árvores que têm frutos!» Esta frase fez-me pensar nos efeitos da vocação: por um lado, ela realiza-nos como pessoas – faz-nos frutificar; por outro lado, os frutos da vocação são sempre para benefício dos outros – mesmo que isso signifique sofrer e não perceber em que mãos vão cair os frutos que, não sendo nossos, Deus fez frutificar em nós.
A beleza do dom é esta mesma: é viver em contínuo acolhimento de dons e em contínua dádiva; em contínuo “sim” à vida verdadeira que nos é confiada e em contínuo “sim” à dádiva inerente ao acolhimento do dom. Dificuldades? Claro que sim! Para Comboni, é a cruz que autentica a vocação que vem de Deus. Contudo, não é preciso desesperar: o Senhor da Vida que nos chama é o mesmo que vence toda a dor e todo o escândalo da cruz. «Só resta, portanto, meter mãos à obra com mais coragem, porque Deus está connosco» (Escritos, n.º 2181).
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