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16 dezembro 2024

Miqueias, o defensor dos pobres

Tempo de leitura: 9 min
O profeta Miqueias poderia muito bem ser um dos profetas do nosso tempo, denunciando a corrupção, as injustiças, o formalismo na vivência da fé. Ele convida-nos a defender a vida e ser voz de tantos irmãos e irmãs que não têm voz.
Pedro Nascimento
Leigo missionário comboniano
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Miqueias, cujo nome significa «quem como Javé», nasceu na localidade de Moreshet-Gath, a 35 quilómetros de Jerusalém, no século viii a. C., e fazia parte do reino de Judá. Foi um homem do campo e assistiu, não raras vezes, à exploração dos governantes (Mq 3, 1-4), dos poderosos (2, 1-5), dos juízes corruptos (Mq 3, 9-11) e até dos falsos profetas (Mq 3,5). 

A sua missão profética está marcada por uma profunda experiência de Deus, alimentada desde a infância num ambiente temente a Deus e marcado pelo desejo de justiça.

 

Denunciar a injustiça

A terra é um dom de Deus e o profeta sentiu no seu coração como os grandes latifundiários e os poderosos do seu tempo marginalizavam o povo e o exploravam. Miqueias é um defensor do povo («o meu povo», como refere o profeta), dos mais pobres, não tem medo de falar e de denunciar, sempre em nome de Deus, por amor ao Senhor e aos seus irmãos.

A situação das injustiças, da corrupção, da exploração, dos falsos profetas não foi apenas do tempo de Miqueias, mas ainda hoje continua a existir. Basta pensarmos nas guerras e em tantas mortes, tantas famílias que perdem tudo, até a vida, por causa de questões políticas ou sede de poder de outros; basta pensarmos em quantos imigrantes morrem a atravessar fronteiras ou no mar, quando buscam melhores condições de vida. 

Muitas vezes as vozes que denunciam, que gritam pelos pobres são silenciadas (recordo-me de São Óscar Romero, por exemplo, e de tantos mártires que morreram simplesmente porque amaram a Deus e defenderam os seus irmãos mais desfavorecidos). 

Em 2015, quando visitei Moçambique, uma das actividades de Justiça e Paz em que os Leigos Missionários Combonianos (LMC) estavam envolvidos, na zona de Carapira, província de Nampula, era a defesa das terras. Muitas multinacionais pretendiam ficar com grandes terras e, com a ajuda de algumas pessoas, pretendiam retirar a terra aos pobres camponeses, algumas vezes a troco de dinheiro (que desaparecia em poucos meses e depois não havia terra para cultivar), outra vezes à custa de ameaças, com detenções inclusive; o trabalho do Flávio Schmidt passou por acompanhar o povo, instruir, explicar os seus direitos e, algumas vezes, estar presente nas reuniões marcadas para «apresentação de propostas» sendo que a sua presença nesses encontros nem sempre foi bem acolhida por quem pretendia explorar/enganar o povo. Contudo, o povo muitas vezes lhe agradecia pela sua presença, por estar com eles, por se preocupar com eles. Como Miqueias, não podemos permitir que a sede de riqueza e de poder de alguns nos destrua enquanto comunidade, enquanto sociedade. 

Para ter a coragem de denunciar os males do povo, é necessário um amor profundo a Deus e aos irmãos, uma entrega na oração e a graça do Espírito Santo. Como referiu o profeta: «Eu, porém, estou cheio de força, do espírito do Senhor, da justiça e da fortaleza, para anunciar a Jacob a sua maldade e a Israel o seu pecado» (Mq 3, 8).

Ser profetas

O profeta não se limita a denunciar a corrupção e a injustiça, mas o seu anúncio vais mais além. O profeta, portador de esperança, ensina também o caminho a seguir: «Já te foi revelado, ó homem, o que é bom, o que o Senhor requer de ti: nada mais do que praticares a justiça, amares a lealdade e andares humildemente diante do teu Deus.» O povo deve voltar o seu coração a Deus e colocá-Lo no centro das suas vidas.

Miqueias propõe aos seus conterrâneos a formação de uma consciência moral recta, que assegure a vivência dos valores éticos fundamentais, que sustêm a comunidade e transformam as relações humanas, gerando laços de fraternidade, justiça e paz. 

Miqueias bem poderia ser um dos profetas do nosso tempo. Ele anima-nos a ser voz dos pobres, explorados e marginalizados, lutando contra a corrupção, as injustiças e a falsa vivência da fé; mas, acima de tudo, ensina-nos que, para vivermos em Deus, devemos com a nossa vida praticar a justiça, amar a misericórdia e viver nos caminhos do Senhor. 

No âmbito da vivência da nossa fé, muitas vezes ficamos presos num formalismo religioso que não é fecundo e não nos permite ter um coração que ama. Este tempo das Igrejas vazias, como refere o teólogo Tomáš Halík numa das suas obras, deve-nos fazer reflectir se a nossa fé está sedimentada apenas na tradição, na cultura, no cumprimento de regras ou se está sedimentada numa relação com Jesus. A fé dos discípulos missionários tem de nascer da comunhão profunda com Jesus. Nisto está a essência da nossa fé: não basta rezar, participar na eucaristia ou em grupos apostólicos. Temos de viver o amor e no amor de Deus (cf. 1Cor 13,2); temos de amar os nossos irmãos e irmãs (tarefa tantas vezes difícil); temos de praticar a justiça num mundo iníquo e sem Deus; temos de ser pessoas de Deus.

 

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Seguir Jesus ao estilo de Comboni

O padre Bienvenu Clemy Mikozama, um jovem de 28 anos, é o primeiro comboniano da República do Congo. Ele partilha a sua história vocacional.

«A minha família é protestante e eu cresci num contexto em que a Palavra de Deus era o centro da vida familiar. Rezávamos de manhã e à noite em família. Quando era jovem, um dos meus amigos, que era católico, trouxe-me o livro Salvar a África com a África. Ao ler a vida de São Daniel Comboni, o meu coração ardia de entusiasmo. Pensava que o facto de ser protestante me limitava, mas o meu amigo disse-me que isso não era um obstáculo e apresentou-me às Irmãs Missionárias Concepcionistas da Educação, naquela que é agora a minha paróquia. Com uma delas comecei os meus primeiros encontros de discernimento vocacional. 

Em casa, quando partilhei o meu desejo de ser padre, o meu pai não recusou, embora não gostasse da ideia. A minha mãe também não se opôs, mas sugeriu a opção de ser pastor protestante. Não sei bem porque é que estava tão determinado, mas o testemunho de vida de Comboni despertou em mim um forte desejo de prosseguir esta intuição missionária. A minha regularidade nas actividades da Igreja Católica e o diálogo que o meu pai teve com a freira que me acompanhava fizeram-no mudar de atitude. 

Conheci os Missionários Combonianos em Abril de 2011 em Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo. Quando regressei a casa, depois de cinco meses a conhecer o carisma comboniano, estava convencido de que queria começar a minha formação no instituto. Ingressei na primeira fase de formação, o postulantado. Posteriormente, fiz o meu noviciado no Chade durante dois anos e estudei Teologia no Gana. Depois regressei para fazer um tempo serviço missionário antes da ordenação sacerdotal na República Democrática do Congo (RDC), que é a província comboniana a que pertenço. Aqui tive experiências muito boas e enriquecedoras. Uma delas foi a das famílias de acolhimento, que me consideraram como seu filho só por causa do laço comum da fé. A minha experiência missionária na RDC marcou-me. Desde o postulantado que visito as comunidades cristãs e continuo a fazê-lo com prazer. Estar com as pessoas, ouvi-las, aprender com elas e ver Deus nascer nos seus corações é a maior alegria de um missionário.

São Daniel Comboni motivou-me a tornar-me católico e a seguir em frente. Ainda tenho muito a aprender, mas continuo a confiar em mim e, sobretudo, em Deus que me chamou para a sua vinha.  

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Dezembro 2024 - nº 752
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