No âmbito do 54.o Dia das Comunicações Sociais, o Santo Padre propõe uma reflexão sobre a importância da narração e da narrativa.
As histórias reais e de ficção têm um papel antropológico estrutural e estruturante na nossa cultura, nomeadamente na forma como: entendemos os valores e as práticas sociais, interpretamos a realidade, construímos a mundividência e a memória colectiva. Neste processo, as notícias, entendidas como um produto culturalmente situado, sinalizam questões e expressam conflitos considerados relevantes para a sociedade, excluindo do seu reportório narrativo acontecimentos que não servem a sua autodefinição.
Desinformação
Na mensagem do papa também encontramos referências às notícias falsas. A informação falsa visa controlar as narrativas nos media e nas redes sociais, manipular a opinião pública, potenciar sentimentos de incerteza e minar os alicerces das democracias. Tal como a designação sugere, estas narrativas são difíceis de identificar. Se algumas são construídas única e exclusivamente baseadas em mentiras, a maioria delas são mais difíceis de discernir, porque misturam informação verdadeira e falsa. É por esta razão que um estudo recente, feito por um instituto associado à reputada Universidade de Oxford, revela que as populações na maioria dos 38 países analisados têm elevados índices de preocupação com as narrativas falsas. Por exemplo, essa preocupação é partilhada por 85% dos brasileiros, por 75% dos portugueses e 70% dos britânicos.
Este receio reflecte a dúvida constante de quem procura e consome informação online, mas também de quem, sem estar à procura, se depara com algo que circula nas redes sociais: O que é verdade? O que é mentira? O que deve ser ignorado? E o que fazer com as notícias que se sabe que são falsas? Como alertar para o assunto sem amplificar as mentiras? Estas são dúvidas reais e que quotidianamente assaltam o espírito de muita gente em muitas partes do mundo. No entanto, em todos os tempos da História e nas mais variadas culturas, sempre houve notícias falsas, quer fosse, por exemplo, sob a forma de rumores ou de propaganda política. Então, porque é que de alguns anos a esta parte se começou a falar tanto em desinformação e em notícias falsas?
As disrupções sociais e tecnológicas que as sociedades contemporâneas atravessam potenciam o espalhar de narrativas falsas que poluem o espaço público e intoxicam o debate informado. No nosso tempo actual, em que as democracias estão a sofrer um declínio nos direitos políticos e nas liberdades civis, mesmo em países onde os valores democráticos estão há muitas décadas enraizados, as narrativas falsas encontram terreno fértil para a sua disseminação.
Além do contexto sociopolítico, importa considerar as características do ecossistema mediático actual para melhor se compreender porque é que as notícias falsas ganharam uma relevância acrescida no nosso tempo.
Estratégias de desinformação
Na era da comunicação personalizada, ubíqua e invasiva, as redes sociais tornaram-se parte integrante da vida quotidiana, e com elas emergiram novas dinâmicas e enunciadores capazes de lançar e agendar temas, interferir no curso do debate público e produzir novas formas de interacção entre indivíduos e instituições. Neste novo ambiente baseado na mobilidade, no digital e na Internet produziram-se alterações nas condições de acesso ao espaço público de actores individuais, muitas vezes anónimos ou que assumem identidades falsas.
Por estas razões, o ecossistema digital contemporâneo potencia novas estratégias de desinformação, nomeadamente através de bots (contas automatizadas, sem envolvimento humano), programados para postarem mensagens e interagirem com usuários nas redes sociais. Os bots ajudam a que a informação falsa se espalhe facilmente. As notícias falsas são construídas de modo a maximizarem a sua visibilidade (nas redes e nos media) e partilha (quer seja por concordância ou discordância) nas plataformas digitais.
A sua rápida propagação deve-se também ao facto de estas narrativas se alimentarem dos medos, das incertezas e inseguranças das pessoas. E quanto maior é a ameaça e/ou a ignorância dos indivíduos sobre determinados temas ou realidades, maior é a probabilidade de as narrativas falsas se espalharem e convencerem elevados números de pessoas. Neste contexto, importa ainda considerar que a disseminação de múltiplas histórias contraditórias (umas verdadeiras e outras falsas) e de informação com elementos verdadeiros e outros falsos dificulta a distinção entre verdade e mentira e aumenta a confusão entre factos e opinião.
Tal como já mencionado, as estratégias de desinformação aumentam a atmosfera geral de dúvida e confusão em que vivemos actualmente. Estas estratégias provocam o que os psicólogos definem por «efeito de verdade ilusória»: falsas alegações repetidas consecutivamente tornam-se plausíveis. Ou seja, os indivíduos tendem a estabelecer uma associação entre repetição e veracidade.
Mas estas tendências não são uma inevitabilidade. É possível e é preciso desenvolver novas estratégias de combate a este flagelo. Uma das medidas que pode ser implementada e que, de facto, já está em curso em alguns países (nomeadamente no Norte da Europa), é o desenvolvimento de projectos de literacia cívica e tecnológica nas salas de aula, mas também na sociedade em geral, com a ajuda dos meios de comunicação social.
As campanhas de literacia visam promover o conhecimento sobre a lógica tecnológica, social, política e económica das notícias falsas. Para tal, e para começar, é preciso pensar sobre as diferenças entre factos e opiniões. Importa recordar que um facto é algo que pode ser provado por evidências objectivas, enquanto a opinião reflecte crenças e convicções, depende, assim, não da realidade, mas de quem os expressa. Importa também explicar todo um novo léxico associado à Internet, às plataformas digitais e às redes sociais: bots (já definidos), algoritmos (filtros matemáticos que seleccionam a informação ou dados a que os indivíduos são expostos online, construídos a partir das suas preferências, comportamento digital e histórico de pesquisa) e big data (grande quantidade de dados sobre o comportamento dos indivíduos recolhidos no espaço digital, nomeadamente através do uso do telemóvel, cartão de crédito, cartão de cliente, passaporte, portagens, computador, etc.)
O jornalismo também tem sido alvo de vastas e continuadas campanhas de desinformação. As redacções são inundadas com histórias falsas que são postas estrategicamente a circular para confundir e dificultar o trabalho dos profissionais das notícias. Várias propostas têm sido avançadas de modo que os jornalistas não caiam na armadilha de se transformarem em amplificadores de mentiras.
Na era da desinformação estratégica, divulgar, destacar e repetir uma informação falsa contribui para o objectivo de quem tem o intuito de propagar determinada mentira. Deste modo, têm-se ensaiado novas formas de narrar as notícias e de denunciar as narrativas falsas. Uma das propostas mais interessantes é apelidada de «sanduíche da verdade», que são notícias compostas por duas verdades com uma mentira no meio. Ou seja, a notícia começa por abordar de forma fidedigna o tema em causa, depois indica e desmonta a mentira por meio do confronto com a verificação dos factos e, de seguida, retorna à verdade. Deste modo, a mentira é desmascarada sem ter demasiado protagonismo na notícia.
Se as características da tecnologia são um elemento relevante a ter em conta, a difusão deliberada de notícias falsas, apresentadas como verdadeiras, resulta também, e tal como já referido, de um conjunto de transformações sociais verificadas nas democracias ocidentais, nomeadamente: desconfiança nas instituições tradicionais, crescimento da polarização social e emergência de partidos anti-sistema. Estas tendências potenciam uma cultura beligerante que desvaloriza a confiança social, a construção de consensos e as regras da civilidade. As trincheiras políticas promovem um rastilho mediático e garantem visibilidade sem precedentes na era digital. Ao mesmo tempo que promovem uma cultura que desvaloriza a importância da verdade, comprometem a qualidade da democracia.
Se muito, ou quase tudo, do que debatemos neste artigo nos ultrapassa a todos nós, comuns cidadãos, essa consciência não nos deve, todavia, isentar de fazer o que está ao nosso alcance. Por esta razão peço emprestadas algumas das palavras do Papa Francisco, para as quais chamo particular atenção dos leitores: «Numa época em que se revela cada vez mais sofisticada a falsificação, atingindo níveis exponenciais (o deepfake [vídeos manipulados com a inteligência artificial]), precisamos de sapiência para patrocinar e criar narrações belas, verdadeiras e boas. Necessitamos de coragem para rejeitar as falsas e depravadas. Precisamos de paciência e discernimento para descobrirmos histórias que nos ajudem a não perder o fio, no meio das inúmeras lacerações de hoje.»
Tecer histórias
Desejo dedicar a mensagem deste ano ao tema da narração, pois, para não nos perdermos, penso que precisamos de respirar a verdade das histórias boas: histórias que edifiquem, e não as que destruam; histórias que ajudem a reencontrar as raízes e a força para prosseguirmos juntos. Na confusão das vozes e mensagens que nos rodeiam, temos necessidade duma narração humana, que nos fale de nós mesmos e da beleza que nos habita; uma narração que saiba olhar o mundo e os acontecimentos com ternura, conte a nossa participação num tecido vivo, revele o entrançado dos fios pelos quais estamos ligados uns aos outros.
Em cada grande história, entra em jogo a nossa história. Ao mesmo tempo que lemos a Escritura, as histórias dos Santos e outros textos que souberam ler a alma do homem e trazer à luz a sua beleza, o Espírito Santo fica livre para escrever no nosso coração, renovando em nós a memória daquilo que somos aos olhos de Deus.
Com o olhar do Narrador aproximamo-nos depois dos protagonistas, dos nossos irmãos e irmãs, actores juntamente connosco da história de hoje. Sim, porque ninguém é mero figurante no palco do mundo; a história de cada um está aberta a possibilidades de mudança. Mesmo quando narramos o mal, podemos aprender a deixar o espaço à redenção; podemos reconhecer, no meio do mal, também o dinamismo do bem e dar-lhe espaço.
(Papa Francisco, extractos da mensagem para o 54º Dia Mundial das Comunicações Sociais)
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