Na segunda-feira, 1 de Junho, Donald Trump fez um discurso no Jardim das Rosas da Casa Branca (repleto de retórica, obviedades e verdadeiras ameaças), em que falou dos protestos em massa que se têm realizado de Leste a Oeste do país, na sequência do assassinato de George Floyd. Em seguida, saiu da residência presidencial e dirigiu-se em direcção à igreja episcopal de São João, através da Praça Lafayette. Percorreu, no total, uns 100 metros. Como tem sucedido nos últimos dias em mais de 140 cidades norte-americanas, também ali se reuniu um pequeno grupo de pessoas, que protestavam contra a brutalidade policial e pediam justiça para George Floyd. Manifestavam-se, mas de modo absolutamente pacífico. No entanto, para limpar a área e permitir que Trump se deslocasse, as forças policiais (com escudos antimotim e a cavalo) intervieram com disparos de granadas de gás lacrimogéneo e balas de borracha e expulsaram, à força, os manifestantes. «Existe, muitas vezes, uma linha ténue entre a tirania e o ridículo. A mini marcha de Trump pela Praça Lafayette foi, simultaneamente, um dos momentos mais bizarros e mais arrepiantes da moderna História presidencial americana» – referiu a CNN (2 de Junho).
Chegado em frente da Igreja de São João, rodeado pelas escoltas e assessores (todos brancos e sem máscaras, como se percebia), o presidente deteve-se em frente da fachada da igreja e ergueu para o céu a Bíblia, que tinha na mão. Sem abri-la. Tudo em frente das câmaras. Um comportamento que deixou irritada Mariann Edgar Budde, bispo responsável pela Diocese Episcopal de Washington: «Não acredito no que os meus olhos viram esta noite. Sejamos claros, o presidente usou a Bíblia e uma das igrejas da minha diocese, sem autorização, como pano de fundo para uma mensagem contrária aos ensinamentos de Jesus e a tudo o que as nossas igrejas representam». Trump – mencionou a revista The New Yorker a 2 de Junho – «aglutinou uma série de símbolos que, como ele sabe, têm poder sobre os outros: a Bíblia, as armas e o escudo».
Alegações imediatamente confirmadas pelo seu comportamento. No dia seguinte à foto realizada em frente da fachada da Igreja Episcopal, o presidente visitou a Basílica do Santuário Nacional da Imaculada Conceição, em Washington DC, dedicado a São João Paulo II. Também ali, se comportou como se estivesse numa passarela. Pousou para as câmaras em frente da estátua do papa polaco, não com a Bíblia e os assessores, mas com a sua esposa Melania. Mais uma vez, irritou os responsáveis. D. Wilton Daniel Gregory, arcebispo metropolitano de Washington (um americano negro), criticou a visita presidencial e falou de abuso e manipulação.
A propósito, vale a pena recordar que este uso instrumental de símbolos religiosos – a Bíblia, o rosário, o crucifixo, o presépio – tornou-se uma prática bem consolidada entre muitos políticos populistas e autoritários: do já referido Trump ao brasileiro Bolsonaro, da boliviana Añez ao húngaro Orbán, do russo Putin aos italianos Salvini e Meloni.
Faltam apenas alguns meses para as eleições de Novembro, e o presidente dos EUA está a recorrer a todos os estratagemas possíveis para garantir a base do seu apoio, uma vez que a sua gestão desastrosa da pandemia (morreram mais de 106 mil americanos, o dobro das vítimas da Guerra do Vietname), pôs em risco uma vitória que, no passado mês de Janeiro, se considerava garantida. A morte George Floyd (considerado «homicídio de segundo grau»), afro-americano, de 46 anos, desarmado, pela polícia de Mineápolis no passado dia 25 de Maio, ofereceu-lhe um novo “alvo”, relegando para segundo lugar as suas acusações diárias contra a China e a Organização Mundial de Saúde (OMS). Defectível (e muitas vezes ridículo) com o novo coronavírus e com a economia dos EUA a desacelerar, hoje Trump pretende ser reconhecido como o presidente «da lei e da ordem». No entanto, a propagação dos protestos – justificados quando pacíficos, mas sem ocasionar violência – está a tornar-se um problema extra para a administração republicana. Entretanto, Trump pressiona o poder estatal e municipal para que reponham a ordem e ameaçou mobilizar o exército dos Estados Unidos, para «dominar as ruas» e reprimir os protestos. Ideia que foi duramente criticada por Jim Mattis, general na reserva e ex-secretário da Defesa. Também o actual secretário, Mark T. Esper, e outros altos oficias do Pentágono, se opõem à mobilização do exército (3 de Junho).
Nos EUA, a questão racial tem 400 anos (os historiadores afirmam que emerge em 1619) e continua a ser um assunto extremamente sensível. Há 40 milhões de negros no país («americanos negros» melhor do que «afro-americanos»), que representam 13% da população total (Census Bureau, 2016). Os números dizem-nos que a população negra foi a mais afectada pela pandemia, tanto do ponto de vista da saúde, como do ponto de vista económico. Quanto à violência policial, o incidente de Mineápolis não é, infelizmente, uma novidade. Em 2019, a polícia norte-americana matou 1004 civis (outras fontes mencionam 1099). Dos mortos, 24% eram negros. Embora estes sejam – como acima referido – apenas 13% da população.
No jogo de Trump, não podiam estar ausentes os meios de comunicação social norte-americanos. O presidente notou que a Fox News, o megafone televisivo ao seu serviço, embora poderoso, não é suficiente para propagar a sua retórica e o conjunto diário de mentiras (19 127 em 1226 dias, de acordo com o Washington Post, de 29 de Maio).
E não deixa de utilizar as redes sociais, especialmente o Twitter (7700 tuítes presidenciais durante 2019 e 1959 de 1 de Janeiro a 29 de Maio) e o Facebook. No entanto, a primeira plataforma começou (finalmente) a assinalar algumas das suas mensagens com alertas (sem as apagar): uma porque não estava verificada («o voto por e-mail – alegava – é fraudulento e as eleições serão manipuladas») e outra por «incitar à violência» («quando o saque começa, o tiroteio começa», tuíte de 29 de Maio). Muito menos corajoso foi o Facebook. O seu chefe executivo, Mark Zuckerberg, continua a defender a questionável liberdade de expressão do presidente (também para garantir os milhões de dólares que Trump gasta em publicidade nas redes sociais), mas suscitando descontentamento entre os seus funcionários.
Entretanto, atingido no seu ego desmedido, Trump retaliou imediatamente ao emitir uma ordem executiva (a 28 de Maio) para condicionar a moderação do conteúdo publicado e a utilização de ferramentas de verificação de factos, ao responsabilizar as empresas que o fazem por todas as mensagens publicadas nas suas plataformas. O que é certo, no entanto, é que «para o presidente – comentou The Atlantic (29 de Maio) –, os alertas às suas mentiras são uma violação dos seus direitos de liberdade de expressão. Esta posição inverte o propósito da Primeira Emenda, transformando um direito individual de liberdade de expressão no direito do Estado a silenciar os seus críticos».
Em suma, o jogo para a vitória nas eleições de Novembro está a ser disputado em várias frentes e, agora, verifica-se um certo equilíbrio. No entanto, Donald Trump – certamente um dos piores presidentes da História dos EUA – ainda pode sair vencedor, apesar da pandemia e dos actuais protestos nas ruas. Uma perspectiva funesta (não só para os Estados Unidos), que parece reflectir-se nas palavras pessimistas da escritora negra Roxane Gay: «No final – escreveu no New York Times de 30 de Maio –, os médicos vão encontrar uma vacina contra o coronavírus, mas os negros continuarão a esperar, apesar da inutilidade da esperança, uma cura para o racismo. [...] O resto do mundo quer voltar ao normal. Para os negros, a normalidade é precisamente a coisa a partir da qual desejamos ser livres.»