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05 setembro 2020

Qual o ponto de partida? Aquele onde se dá o primeiro passo!

Tempo de leitura: 9 min
O discernimento vocacional é um processo dinâmico que exige a capacidade de situar-se no presente e caminhar com entendimento e perseverança rumo à realização de felicidade autêntica.
Susana Vilas Boas
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Por estes dias, deparei com uma história antiga, narrada pelos chamados Padres do Deserto nos primeiros séculos do Cristianismo. Nesta história é apresentada uma situação que todos podemos reconhecer nos nossos dias (sobretudo se vivemos fora das grandes cidades). Trata-se da história de um homem que se passeia com o jovem filho levando o seu cão de caça. A um dado momento, o cão avista um coelho branco no meio do bosque. Como está treinado – e é impulso natural dos cães – o cão começa a correr atrás do coelho, enquanto ladra freneticamente para dar o alerta da sua perseguição. No mesmo bosque – e vindos da mesma aldeia – outros cães, ao ouvirem o primeiro ladrar, começam a ladrar e a correr como ele. Após alguns minutos de corrida, desencorajados e cansados, os cães vão abandonando a perseguição e só o primeiro permanece atrás do coelho até o conseguir apanhar. Chegados a este ponto, o jovem rapaz – não habituado às andanças da caça – pergunta ao pai: «Paizinho, porque é que todos abandonaram a perseguição menos o nosso cão?» O pai respondeu-lhe: «Ora aqui está uma grande lição de vida: os outros cães corriam e ladravam por verem outros cães a correr e a ladrar. Com o nosso cão era diferente. Ele sabia a razão pela qual estava a correr e a ladrar – ele viu o coelho! Na nossa vida acontece o mesmo, se corremos por ver correr, a nenhum lado chegamos. Mas, se “virmos o coelho” e pusermos pés ao caminho, será duro, mas nada nos fará desistir sem alcançar os nossos objectivos.»

Esta história vem ao encontro das grandes questões vocacionais que nos inquietam ao longo da vida. A vida não pára e, muitas vezes, perdemos o norte, não sabemos porque corremos, para onde vamos e nem porque vamos na direcção em que nos dirigimos. Corremos por ver outros correr e, muitas vezes, sem mesmo percebermos porque o fazemos. Tudo parece surgir naturalmente: somos arrastados para determinadas coisas, como se fôssemos marionetas sem vontade própria. No fundo, no fundo, tudo isto são desculpas! O que procuramos é ter a aprovação dos que nos conhecem, mas... isso não é vocação nem conduzirá nunca à realização pessoal – a uma realização de felicidade autêntica.

O problema do ponto de partida

O primeiro problema que se coloca quando olhamos para a nossa vida, procurando vislumbrar um futuro de felicidade que queremos alcançar, é mesmo o de nos situarmos no momento presente: o que queremos ser (no futuro) não existe dissociado daquilo que somos (no presente). Na história que apresentei, o ponto de partida do primeiro cão foi precisamente o “ver o coelho”, a partir do ponto onde se encontrava. Só isso garantiu o sucesso da missão de “caçar” que o cão tinha. Do mesmo modo, temos de ousar perguntarmo-nos – a partir de onde estamos – aonde queremos chegar. Quando discernirmos/ /virmos “o nosso coelho”, depois poderemos pensar nas opções de caminho para o apanhar, podemos optar por uma corrida mais directa ou mais estratégica, mas já nada nos fará perder o “coelho” de vista.

Este processo não pode ser algo isolado. É preciso escolher a companhia certa para nos acompanhar neste olhar sobre nós mesmos e sobre a realidade – não vá acontecer a vida pregar-nos uma partida: pensarmos ter visto “o coelho”, mas tudo não passar de uma ilusão de óptica, ou de um reflexo de termos as lentes dos óculos sujas. Sabemos que muito facilmente podemos ser enganados por nós mesmos e pelas correntes sociais e culturais que tanto vão marcando o nosso dia-a-dia.

Os fantasmas, as fantasias e… a vocação!

Sem nos darmos conta, quando partimos para o grande bosque vocacional, se o fazemos sozinhos (porque não precisamos de ninguém! Somos auto-suficientes!), o risco será andar à deriva, ao sabor do vendo e a correr atrás do que outros correm e não daquilo que nós mesmos andamos à procura. Isto não significa que a nossa missão é isolada da dos outros, mas que é distinta da deles – é única – é na sua especificidade que ela se articula e vai ao encontro da missão/vocação/vida dos outros.

Todos os dias somos bombardeados com uma felicidade utópica, seja pela publicidade, as artes ou o cinema. Tudo parece fácil e perfeito! Com esta ânsia do “fácil e perfeito”, entramos no desejo de um futuro de fantasia ao invés de corrermos atrás de uma felicidade concreta e real. A fantasia faz-nos ver “coelhos” conforme nos dá jeito. Ao sabor da facilidade e do modo como nos apetece no momento (sempre numa luta desenfreada de nos tornarmos marionetas: sem sofrimentos nem lutas, apenas a seguirmos para onde somos arrastados).

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(Foto Cathopic)

Outras vezes, se permanecemos sozinhos no “bosque”, começamos a entrar no mundo do medo. Em todos os becos existem fantasmas! O fantasma do “não sou capaz”, o fantasma do “não sei o que faça”, os fantasmas “do coitadinho de mim”! Também estes fantasmas, pouco a pouco, vão-nos turvando a visão e vão conduzindo a que comecemos a correr para onde outros correm: afinal, se muitos vão por ali, é sinal que deve ser bom! Mas, como se costuma dizer, o bom é inimigo do óptimo. O “estar bem”, não é sinónimo de felicidade! O bom para uns não é o bom para todos. Cada ser humano tem um caminho – uma vocação. Copiar a dos outros, por medo ou por ser mais fácil, não é opção de vida: é cobardia e fuga da realidade/felicidade!

Ousar dar o primeiro passo

Vencer o problema do situar-se no presente e do discernir a vocação, afastando fantasmas e fantasias, é uma questão fundamental para quem quer levar a vida e a sua felicidade a sério e de modo responsável. A segunda questão a resolver é... a da inércia! Avistado “o coelho”, temos de pôr os pés ao caminho!

O Papa Francisco percebe estes dinamismos e dificuldades do caminho vocacional e recorda que o próprio Jesus viveu a Sua vocação a partir de uma realidade concreta (filho de um carpinteiro (Mt 13,55); o carpinteiro de Nazaré (Mc 6,3)) e fez o discernimento vocacional que O levou à Missão Redentora. A Sua juventude é marcada pelo sentir-se «Filho muito amado» (Lc 3,22) e pela relação que tem com o Pai e com os Seus amigos. Mas, também, todo o seu crescimento vocacional é marcado por incompreensões daqueles que vivem à Sua volta: «Não é este o filho de José?» (Lc 4, 22), questionavam sem compreender. Vizinhos, amigos e mesmo os seus pais pareciam não perceber nada nem da missão nem da vocação de Jesus (Lc 2,48-50).

Não é fácil viver por amor, mas é possível! O discernimento vocacional exige vencer as barreiras do Maria vai com as outras, exige ousar ir para lá das fantasias e dos fantasmas que, incessantemente, nos assombram e obstaculizam. Por isso mesmo, o papa não deixa de interceder por todos quantos procuram genuinamente dar o primeiro passo rumo a um discernimento sério e responsável da sua vocação: «Queridos jovens, ficarei feliz vendo-vos correr mais rápido do que os lentos e medrosos. Correi atraídos por aquele Rosto tão amado, que adoramos na sagrada Eucaristia e reconhecemos na carne do irmão que sofre. O Espírito Santo vos impulsione nesta corrida para a frente» (Cristo Vive, n.º 299).

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