Entrevista a Sérgio Cabral, ligado aos Leigos Boa Nova e ao Centro Missionário da Arquidiocese de Braga, que nos conta a sua experiência e sentimentos face à actualidade vivida naquele país africano de língua oficial portuguesa.
Sabemos que o Sérgio Cabral, ligado aos Missionários da Boa Nova, esteve na diocese de Pemba, capital da província de Cabo Delgado, em trabalho de voluntário e missão. Como vê tudo o que se está a passar?
Sérgio Cabral (SC) – Com o coração angustiado. Com aquele sentimento de impotência perante uma situação profundamente errada, hedionda, sem explicação do ponto de vista humano. Como se pode matar assim, quem pode matar assim? Como foi possível deixar escalar toda esta violência, quando já se sabia, mesmo antes do início dos ataques, em 2017, que havia cada vez mais gente, sobretudo jovens, a aderir a uma visão extremista do Islão trazida por líderes islâmicos estrangeiros, nomeadamente, da Tanzânia, do Quénia, da Somália, da região dos Grandes Lagos?
A descoberta, na última década, de grandes reservas de gás, que fazem parte das maiores do mundo, de grandes reservas de ouro e o maior depósito de rubis do mundo, não tem retirado a população da pobreza absoluta. Pelo contrário, tem causado impactos sociais muito negativos (aumentou a violência, o crime, a prostituição, o trabalho forçado, o abandono escolar), uma vez que as comunidades não têm qualquer direito sobre a terra, o chão que os viu nascer e crescer. A terra é do Estado que, infelizmente, fica com os dividendos dessas riquezas e não as tem repartido pela população, em infraestruturas de saúde, de educação e melhores condições de vida.
Neste contexto, os jovens, vulneráveis, a grande maioria sem acesso a uma educação mínima, sem horizontes de futuro, são presas fáceis de um plano político-económico (e não religioso) com ligações ao Daesh para o controlo daquela região. No fundo, estes jovens, denominados de Al-Shabab, lutam contra um Estado que nada lhes tem dado, assumindo a bandeira negra do Islão radical como sua, que também nada lhes pode dar, a não ser morte.
Quanto tempo esteve em Pemba? Quando foi a última vez que lá esteve? E em que funções se deslocou para lá?
SC – Estive em Pemba em cinco ocasiões. A primeira vez foi há 20 anos, de Março de 2001 a Janeiro de 2002, como seminarista dos Missionários da Boa Nova, na Paróquia Maria Auxiliadora. Depois, em 2005, 2010 e 2013 estive em Pemba em projectos de curta duração organizados pelos Leigos Boa Nova em articulação com os missionários da Boa Nova. A nossa presença visava reforçar o trabalho da Paróquia Maria Auxiliadora, principalmente na área da educação, uma vez que esta paróquia tem ao seu cuidado três escolinhas nos bairros de Natite, Cariacó e Lioce. A última vez foi entre outubro de 2016 e julho de 2017, já casado, juntamente com a minha esposa, como missionários ligados aos Leigos Boa Nova. Demos apoio ao trabalho que estava a ser desenvolvido pela Paróquia Maria Auxiliadora e pela Diocese de Pemba, nomeadamente, nas áreas social, da educação e pastoral.
Como caracteriza aquele povo? Tem contactado com missionários e amigos que lá deixou e conhece?
SC – É um povo bom, simples, humilde, alegre, dotado de uma grande resiliência. Em situação de extrema pobreza, como é que tantas pessoas são capazes de sorrir, de fazer festa, e de ter uma perspectiva de vida tão esperançosa? É, também, um povo muito solidário, acolhedor.
Relativamente ao contacto com pessoas que vivem em Pemba, sejam missionários ou não, o contacto é frequente. O facebook também veio facilitar um maior contacto com os amigos e conhecidos, alguns de longa data, desde os tempos de 2001 e 2002.
Tem notícia de alguém que tenha perdido a vida ou que tenha fugido por causa dos ataques terroristas?
SC – Não tenho notícia de alguém conhecido que tenha perdido a vida, mas tenho notícia de pessoas que fugiram ou, de alguma forma, foram afectadas pelos ataques. Por exemplo, os missionários e missionárias que estavam em Macomia e em Mocímboa da Praia, nomeadamente uma Irmã da Congregação de São José de Chambéry que nos acolheu com grande carinho (assim como toda a sua comunidade), a mim e à minha esposa, em Mocímboa da Praia. Esta Irmã, juntamente com outra Irmã da mesma congregação estiveram 24 dias desaparecidas após os ataques à cidade de Mocímboa da Praia em Agosto de 2020.
Na sua opinião, qual o motivo do silêncio e da demora (quase três anos) em acordar para o drama das populações de Cabo Delgado?
SC – O governo da Frelimo, infelizmente, parece estar mais preocupado em esconder toda esta situação do que em prestar todo o apoio àquele povo. Se não fosse a voz do anterior bispo de Pemba e as várias referências do Papa Francisco ao drama de Cabo Delgado (a primeira na Páscoa do ano passado), talvez só agora, com os recentes ataques à vila de Palma, é que o mundo saberia o que se está a passar naquela região. O facto de estes ataques terem afetado estrangeiros e o maior investimento privado em África, deram maior visibilidade à situação. Há claramente uma falta de atenção, diria até, de compaixão, para com este povo do Norte do país, como se Cabo Delgado não fosse Moçambique.
Creio que o Governo moçambicano subestimou estes ataques, pensou que conseguiria debelar a situação com as Forças de Defesa e Segurança, mas os tais “insurgentes” já mostraram que não são apenas jovens desiludidos com armas e catanas nas mãos a espalhar o terror. Há uma rede terrorista internacional a comandar, uma estratégia, um propósito claro de ocuparem aquela região. Na minha opinião, o Governo moçambicano já deveria ter pedido ajuda internacional no âmbito do combate militar há muito tempo, mas o próprio presidente Nyusi insiste que em território moçambicano só os moçambicanos é que devem travar esta luta. Talvez o orgulho de um partido que conseguiu a soberania à custa de tanto sofrimento se sobreponha à humildade de pedir ajuda militar efectiva. No meio disto tudo, quem paga é sempre o povo.
Conheceu o bispo de Pemba, recentemente transferido pelo Papa Francisco, D. Luiz Lisboa? Como encarou o seu papel como bispo e como «única» voz a pedir socorro para o povo de Cabo Delgado?
SC – Sim, conheço o D. Luiz desde o ano de 2001, quando ele chegou a Pemba para iniciar a actividade missionária dos Passionistas nessa diocese. Mas só a partir de 2016 é que o conheci mais de perto, porque eu e a minha esposa fomos convidados por ele para ficarmos alojados no Paço Episcopal juntamente com ele e outros missionários durante todo o tempo da nossa presença. Assim, para além de vivermos juntos, em família, pudemos colaborar mais directamente com ele em toda a abrangência do seu trabalho.
D. Luiz é uma pessoa muito humana, acolhedora, um homem simples de oração e de acção que está verdadeiramente comprometido com o Evangelho e com os pobres. Aliás, o seu lema episcopal – “Enviado para evangelizar os pobres” – foi o seu programa e será sempre o seu programa onde quer que esteja. Por isso, perante o sofrimento das populações pobres e esquecidas de Cabo Delgado, ele não teve outra alternativa se não ser voz dos que não têm voz. Esse compromisso radical com o Evangelho e com os pobres, deu-lhe a força necessária para não temer e até relativizar todas as pressões e ameaças de que foi vítima ao longo dos últimos anos por parte de algumas pessoas influentes ligadas ao poder político.
Como caracteriza o povo de Cabo Delgado e as suas comunidades cristãs? Qual a percentagem de católicos? Como se relacionavam com as outras confissões ou religiões, como o islamismo e o animismo?
SC – O povo é muito alegre, “apesar dos apesares” como diria um amigo meu natural de Pemba, e as comunidades cristãs são muito vivas. É importante notar que durante as guerras colonial e civil, o que corresponde a quase 27 anos, muitas comunidades cristãs do interior conseguiram subsistir sozinhas, sem a presença de missionários ou de clero local, emergindo o trabalho apaixonado e abnegado de catequistas e de animadores para que a fé não se apagasse e a Igreja se continuasse a implantar. Tornou-se uma Igreja ministerial, em que os leigos não são meros espectadores, passivos, mas assumem um papel fundamental, activo, na vida das comunidades.
De acordo com os censos de 2017, os católicos são cerca de 36% da população, enquanto que os muçulmanos são 53%. Os restantes pertencem a outras igrejas cristãs ou assumem outras crenças religiosas. Quanto à relação entre muçulmanos e católicos, gostaria de dizer que no cemitério antigo da cidade de Pemba as campas destas confissões religiosas se encontram misturadas. Isto significa que sempre houve uma relação muito amistosa e continua a haver. Há diálogo e ações conjuntas em favor da paz. Os jihadistas não são reconhecidos como verdadeiramente muçulmanos pela comunidade islâmica de Cabo Delgado, porque, tal como afirmou o mualimo Issufo Mussá à Agência Lusa nestes dias, se fossem do islão “não poderiam queimar mesquitas, nem degolar pessoas como cabritos”.
Qual a mensagem que deixa aos nossos leitores?
SC – Não podemos ficar indiferentes perante as barbaridades que continuam a ocorrer em Cabo Delgado. Este problema não diz respeito apenas aos moçambicanos, mas a toda a humanidade. Há coisas que podemos fazer: podemos unir-nos àquele povo através da nossa oração; podemos amplificar o seu grito através das redes sociais e da comunicação social; podemos ajudar os milhares de deslocados através do nosso contributo monetário. O Centro Missionário da Arquidiocese de Braga, do qual faço parte, continua com a campanha “Juntos por Cabo Delgado” activa. Quem puder, apelo ao contributo através da conta da Arquidiocese de Braga para o efeito: PT50 0010 0000 0276 7480 0020 8. Obrigado.
Sérgio Cabral
Natural de Loureiro, Oliveira de Azeméis, vive atualmente em Mire de Tibães, Braga. É marido, pai e professor de Educação Moral e Religiosa Católica no Colégio de São Gonçalo de Amarante. É membro dos Leigos Boa Nova e do Centro Missionário da Arquidiocese de Braga.