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05 outubro 2021

Viver a vocação em liberdade

Tempo de leitura: 9 min
O caminho de discernimento vocacional é um caminho libertador e de discernimento da própria liberdade pessoal.
Susana Vilas Boas
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(© 123RF)

 

A afeição ainda resolverá os problemas da liberdade; aqueles que se amam tornar-se-ão invencíveis. Estes versos do poeta e jornalista norte-americano Walt Whitman vieram recentemente parar à minha mesa e fizeram-me pensar sobre a dimensão da liberdade presente na vocação. Se é certo que, muitas vezes, o conceito de liberdade é mal entendido e se confunde com o simplista «fazer o que me apetece», não é menos verdade que, se pensarmos na questão a sério, sabemos que as coisas não são bem assim. A liberdade implica a integralidade do ser humano e vai sempre ao encontro, não aos seus caprichos egoístas, mas da plenitude da sua realização. Nesta linha, liberdade e vocação apresentam-se como duas faces de uma mesma moeda: inseparáveis e com valor unicamente quando estão juntas. De facto, como alerta o Papa Francisco, «não se pode exigir do ser humano um compromisso para com o mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e responsabilidade» (Laudato Si’, n.º 118).

Precisamente porque a vocação não é um «extra» ou um «anexo» na nossa vida, a liberdade poderá ser vivida autenticamente no caminho de discernimento vocacional e ao longo de toda vida – livremente optamos por viver a plenitude do nosso ser e, consequentemente, a nossa liberdade é desenvolvida (por opção) de acordo com as exigências próprias da coerência com o que somos e com o que desejamos ser. O mesmo acontece, por exemplo, com as relações de amor (invocadas no poema de Whitman como raiz e triunfo da liberdade). O amor tem exigências que nos fazem correr e vencer o nosso comodismo. Livremente optamos por viver com os olhos postos naqueles que amamos e a sacrificar os nossos caprichos pela felicidade destes – sendo aí que sentimos a realização da nossa própria e autêntica felicidade.

Liberdade com responsabilidade

O caminho de discernimento vocacional afigura-se, portanto, como um caminho libertador e de discernimento da própria liberdade pessoal, uma vez que «a liberdade humana pode prestar a sua contribuição inteligente para uma evolução positiva, como pode também acrescentar novos males, novas causas de sofrimento» (Laudato Si’, n.º 79). A liberdade sem responsabilidade torna-se asfixiante e um fardo para a própria pessoa e para o mundo que a rodeia. De facto, se esta é vivida unicamente com um sentido egoísta, o «fazer apenas o que me apetece» leva a uma espiral de individualismo que, em pouco tempo, se converterá em solidão profunda. Por outro lado, ao fazê-lo, vamos destruindo e aniquilando tudo e todos à nossa volta (afinal, qual seria a pertinência de se relacionar com alguém para quem só a sua vontade conta?).

Pensar a liberdade responsavelmente é abrir as portas para uma vivência da mesma ao longo de toda a vida (e não apenas durante um determinado período de tempo). Para isso é preciso ter a coragem de compreender e distinguir o que é capricho do que é missão; e o que é egoísmo do que é dádiva (quase sempre as nossas opções egoístas têm a aparência de ter justificações muito nobres!). Como fazer isso? Desde logo dá para ver que este discernimento não é algo que se consiga fazer sozinho!

 

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(© 123RF)

 

Libertar-se: caminho de possibilidade para a vocação

Existem algumas amarras que temos de cortar para sermos verdadeiramente livres. A primeira é mesmo esta amarra da auto-suficiência. Sempre que consideramos que podemos saber, e escolher o melhor, sozinhos, estamos a afundar-nos nas «forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo» (Laudato Si’, n.º 105). Isso não significa que teremos de viver e pensar “com a cabeça dos outros”, mas significa que tomamos em mãos – responsavelmente – a nossa vida e procuramos quem caminhe connosco e nos ajude a ver mais longe para fora e para dentro de nós mesmos. Quando confiamos plenamente em alguém, não significa que vamos guiar-nos cegamente pela sua cabeça, mas que aquilo que aquela pessoa nos diz é tido seriamente em conta nas nossas reflexões e decisões de vida. Sem quebrar esta amarra nunca seremos verdadeiramente livres – apenas seremos... verdadeiramente sós!

Outra corrente que há que quebrar é a ideia de perda. Todos os dias, em quase todos os momentos, temos de fazer escolhas: a que horas nos levantamos? O que vamos vestir? O que vamos comer? Como vamos e para onde vamos? Tudo exige que façamos opções que, por vezes, dizem respeito a coisas simples e, outras vezes, exigem bastante mais de nós. Quando, no que diz respeito às grandes decisões da vida, usamos da liberdade para escolher, deparamos sempre com a sensação de perdão: «Se opto por este caminho, fecho as portas a todos os outros. Que grande perda!» Este pensamento corrompe a liberdade! Encarcera o ser humano no desejo de ter tudo, impedindo-o de ser tudo (tudo aquilo que ele é verdadeiramente). Libertar-se desta corrente é escolher alegremente – não porque a escolha seja fácil, mas porque não há sensação de perda, mas de ganho!

Isto faz-me recordar quando estava de partida para a missão na República Centro-Africana. Nessa altura, muita gente me dizia: «Se tu vais, vais perder tudo!» E eu sempre respondia: «Eu vou para encontrar tudo!» De facto, nada se perdeu: as autênticas relações perduraram e foram fortalecidas, as circunstâncias laborais foram alteradas, mas nem por isso pioraram e, mais ainda, vivi – fui ao encontro – da minha realização como pessoa e, nesse sentido, saí só a ganhar! Foi fácil? Hum... Alguém está à espera de facilitismos quando se fala de viver autenticamente aquilo que se é?! Pois... esta é outra amarra da qual nos temos de libertar se queremos viver a vocação com total liberdade.

O caminho mais fácil não é necessariamente a melhor opção. Uma vez mais, a tentação de andar ao sabor do vento (para evitar dores de cabeça maiores) não é o caminho para a liberdade e, por conseguinte, afasta a possibilidade de se viver a vocação. Os que ousam trilhar um caminho autêntico nunca terão uma tarefa fácil diante de si, mas... esta missão só será impossível para aqueles que tiverem a ilusão de a poderem realizar sozinhos.

A liberdade que acompanha a realização vocacional é aquela que tem como fundamento maior o ser humano, isto é, a certeza de que o ser humano é capaz de viver autenticamente. Acreditar nisto é olhar para si mesmo e para os outros com esperança, sem se deixar levar pelas dificuldades e razões circunstanciais. Mesmo quando damos um mau passo no caminho, não significa que tudo está perdido! Ao contrário, tudo faz parte do caminhar, uma vez que «os seres humanos podem superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, além de qualquer condicionalismo que lhes seja imposto. São capazes de se olhar a si mesmos com honestidade, externar o próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à verdadeira liberdade» (Laudato Si’, n.º 105). Esta certeza será, sem dúvida, alento para o nosso caminho e abrirá portas a olhar os outros de modo libertador – sem o fatalismo dos maus passos que estes deram, mas com o amor e a certeza de que toda a pessoa é mais do que momentos e acções pontuais que possam ocorrer. 

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