O dia-a-dia é marcado por pressões, por aliciamento, opiniões e tantas coisas que parecem convergir para nos ensurdecer da nossa própria vontade e nos calar relativamente àquilo que somos. Sem nos darmos conta, somos abalroados pelas vontades dos outros que insistem em querer definir as nossas prioridades de vida. A um dado momento, já parece importar pouco o que somos e o que ansiamos ser, o que sonhamos e o que nos realiza. Afinal, quando procuramos discernir a vocação, parece sempre que os outros sabem melhor do nós o que é melhor para nós. Neste emaranhado, muitas vezes, sucumbimos à pressão e tornamos descartáveis os nossos sonhos e a nossa própria vida. Dá menos trabalho andar ao sabor do vento e tudo parece mais fácil se se optar por não lutar por coisa nenhuma. Mas... estaremos condenados a descartar aquilo que mais nos realiza e mais nos humaniza?
A vocação não se compraz com facilitismos: o amor é sempre exigente e, por isso, é impossível vivê-lo se se optar por andar à deriva e agir apenas de acordo com a opinião dos outros. Discernir a vocação é ousar dar passos para não ser arrastado pelas correntes aliciantes da promessa do facilitismo e da felicidade instantânea; é encontrar companheiros de caminho com coragem de lutar connosco e de nos ajudar a ver para lá do nevoeiro de fumo que a sociedade, tantas vezes, nos impõe – companheiros que ousem dizer-nos quando estamos errados e que, com sinceridade, nos mostrem os desafios de viver plenamente a vocação. Estes serão também aqueles que nos ajudarão a fazer face às pressões e às opiniões que procuram tornar-se imperativos na nossa vida.
Dizer não à cultura do descarte
A vocação é sempre dom para nós e para os outros. Negar a vivência da vocação não é apenas fechar as portas àquilo que somos, mas é também negar-nos a ser dom para a realidade que nos rodeia.
O efeito bola de neve que parece ser tão notório face a grandes decisões erradas dá-se também nas pequenas e grandes decisões – sejam elas boas ou más. Importa, por isso, ter presente que cada um é agente activo na configuração da sociedade, da cultura e da realidade em que vivemos. Lutar contra a corrente dos facilitismos é ousar contribuir produtiva e beneficamente para o mundo em que vivemos. Não há vocações que compaginem humanismo com discriminação, ou que consigam articular bem comum com descarte humano. A vocação é sempre bênção e, nesse sentido, todos somos «chamados a cuidar da fragilidade, da fragilidade dos povos e das pessoas. Cuidar da fragilidade quer dizer força e ternura, luta e fecundidade, no meio de um modelo funcionalista e individualista que conduz inexoravelmente à “cultura do descarte”; significa assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo de dignidade» (Fratelli Tutti, n.º 188).
A vocação é sempre dignificante e tem sempre presente as realidades feridas da nossa sociedade. De facto, porque a nossa humanidade é a base da realização vocacional, nada do que é humano e humanizante pode ser descartável quando se procura viver autenticamente a vida. Importará não esquecer que viver através do que é geralmente aceitável e promovido leva, muitas vezes, à injustiça – as generalizações são sempre injustas. Ninguém deve, por isso, contentar-se com uma vida «globalmente satisfatória»! Ao contrário, há que dar passos para uma vida «concretamente feliz». É no concreto da nossa existência que nos realizamos e tornamos a realidade em que estamos inseridos algo fecundo – gerador de vida –, uma realidade onde as pessoas não são descartáveis e onde a vida acontece em favor do bem de todos.
A vocação é humano-sustentável
A fraternidade está na base de uma vivência vocacional autêntica. Como diz o velho ditado, a união faz a força! Como poderemos, então, acreditar que sozinhos somos capazes de desbravar caminhos e descobrir a verdade do que somos e do que sonhamos ser (descobrir o sonho de Deus para nós)? Não será muita presunção da nossa parte pensar que sozinhos podemos caminhar com total segurança por entre a fumaça das pressões sociais e dos hábitos culturais que brotam de generalizações? Que fazemos hoje de concreto para um discernimento vocacional orientado e acompanhado? A vocação é humano-sustentável porque nela o ser humano é integralmente tido em conta, tanto no que diz respeito àquele que procura discernir a sua vocação, como à dimensão relacional que é própria de todo o ser humano.
A sustentabilidade humana é a base para que nada seja deixado ao acaso, para que ninguém seja descartado e para que tudo quanto existe no nosso mundo seja reconhecido segundo a sua dignidade. Na vocação há opções e escolhas a fazer, mas não mutilações! A liberdade é sempre fraterna, se assim não for, esta torna-se numa ditadura libertina onde só o «eu» individualista tem lugar (levando à mutilação do carácter relacional próprio do ser humano e, consequentemente, ao descarte da sua própria humanidade). O «eu pessoal» (e não individualista) do ser humano abre portas a uma vivência autêntica, num caminho em que a pessoa se realiza sem ter de pisar, espezinhar e/ou descartar ninguém. Ora, fazer isto não é tarefa fácil nem é algo que seja possível fazer de maneira isolada. Fazer-se acompanhar por pessoas com uma vocação similar àquela que intuímos ser também a nossa é fazer-nos rodear por uma luz que tornará o caminho mais evidente. Além disso, é escolher companheiros de viagem que, tendo já percorrido um caminho similar ao nosso, sabem como vencer os obstáculos e as circunstâncias adversas que possam surgir.
A vocação é divino-humana
O dom de Deus que é a vocação não permanece oculto e/ou escondido do conhecimento humano. Deus revela/desvela o dom conforme procuramos descobri-lo. Isto faz-se sempre através de mediações e daí a necessidade de um discernimento onde a fraternidade se faz presente. O Papa Francisco olha o sentido da vocação e a sua dimensão fraternal de forma muito humana, tomando como exemplo privilegiado Maria, uma vez que esta viveu fielmente a sua vocação, sempre sem descartar o princípio da fraternidade nem procurando percorrer um caminho isolado. De facto, Maria «recebeu junto da Cruz a maternidade universal (cf. Jo 19, 26) e cuida não só de Jesus, mas também do “resto da sua descendência” (Ap 12, 17). Com o poder do Ressuscitado, Ela quer dar à luz um mundo novo, onde todos sejamos irmãos, onde haja lugar para cada descartado das nossas sociedades, onde resplandeçam a justiça e a paz» (Fratelli Tutti, n.º 278).
Imbuídos do exemplo de Maria, descobrimos os trilhos que todo aquele que procura viver uma vida autêntica tem de percorrer. No entanto, não bastará olhar para bons exemplos. Há que pôr os pés ao caminho e caminhar! Hoje precisaremos de ajuda para caminhar seguros e sem desanimar. Amanhã seremos chamados a continuar de mãos dadas com quem nos acompanha e a dar a mão a outros que iniciem o seu processo de discernimento. Esta é uma corrente humana de fraternidade que, não apenas nos ajuda no caminho, mas, sobretudo, que nos dá meios para acolher o dom de Deus – a vocação.
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