Em tom profético, o Papa Francisco, na encíclica Fratelli Tutti, antecipa a realidade que vivemos hoje: «Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integração. Mas a História dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos» (Fratelli Tutti, n.º 10-11). Efectivamente, o fervilhar e extremar de posições fazia antever que, de um momento para o outro, as armas iriam invadir o nosso espaço e a nossa vida, desafiando-nos a reflectir sobre o que realmente é importante e sobre o sentido último da nossa vida. Do sofá vamos assistindo aos horrores da guerra. Por todo o lado se ouvem gritos em favor da paz e palavras de solidariedade e compaixão para com o povo ucraniano. Mas não correremos o risco de nos ficarmos pelas palavras, enquanto olhamos expectantes e críticos para as medidas que, em cada país, os governos vão impondo como meio de pressão para a paz? Não corremos o risco de reduzir o nosso olhar apenas para esta guerra que nos está mais próxima, esquecendo centenas de outras que assolam o nosso mundo? Não será, antes, este tempo conturbado favorável a um caminho de ousada determinação e responsabilidade?
A vocação é abertura à vida, na certeza que «cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos» (Fratelli Tutti, n.º 17). Este cuidar de nós mesmos não supõe uma fuga à realidade, mas, antes, um ir além dos nossos caprichos e dos nossos desejos individualistas. Lá diz o velho ditado que só se atiram pedras às árvores que têm frutos e, efectivamente, o dom da vocação é dom para os outros (não são as árvores que comem os próprios frutos, nem os rios quem bebe as próprias águas)!
Dimensão relacional da vocação
A vocação nunca é algo isolado, individual ou solitário. Ao contrário, a dimensão de dom confere-lhe um carácter relacional, sem o qual ela não pode ser nem discernida nem realizável. Isso não significa que todos nos ajudarão a ver o caminho e auxiliarão a dar passos rumo à nossa plenitude de vida! Somos humanos e, por isso, tudo o que pareça «estranho», «fora da norma» ou «não expectável» apresenta-se sempre como um desafio onde, muitas vezes, o medo leva a melhor. Por isso mesmo é que, não raras vezes, quando falamos sobre aquilo que pensamos ser a realização da nossa vida, surgem sempre mil opiniões, normalmente começadas por «se eu fosse a ti...» ou então «não te metas nisso». Não é porque as pessoas nos querem mal, mas porque pensam – a partir daquilo que são e da vocação que têm – saber o que é melhor para nós. Deveremos, então, sucumbir a um caminho solitário? Nada disso! Como lembra o Papa Francisco, «ninguém pode enfrentar a vida isoladamente; precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos! Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos» (Fratelli Tutti, n.º 8). De facto, o que está em causa não é o caminhar sozinho (isso está fora de questão), mas de ousar escolher aqueles que nos acompanharão de modo mais próximo ao longo do caminhar.
Aqueles que vivem e se sentem realizados numa vocação que pensamos ser algo similar àquela que sonhamos para nós, estarão muito à altura de nos ajudar a discernir – a ver melhor dentro de nós – e a perceber se este é ou não o caminho que nos fará viver em plenitude. Caso o caminho seja esse, estes (porque já passaram por essa situação) melhor poderão ajudar no caminho e serão sempre companheiros de jornada ao longo da vida. Se o caminho for outro, estes que nos acompanham, de tal modo nos conhecerão (no íntimo do nosso ser), que poderão de modo excelente orientar-nos na direcção certa. Então o que temer? Porque não ousar e dar um primeiro passo em direcção aos que melhor nos podem auxiliar no discernimento e melhor nos podem ajudar a fazer face às dificuldades, dialogar com os que não compreendem o nosso caminho e partilhar connosco a alegria de uma vida realizada?
Abrir-se à vida, além do medo
O que, muitas vezes, parece ser um grande obstáculo nem sempre tem força para bloquear a nossa felicidade. Tudo se resolve se, com humildade, metermos os pés ao caminho, sem pretender ser super-heróis e fazer tudo sozinhos. O medo dos nossos amigos e familiares de que possamos estar a enveredar por caminhos tortuosos onde nada daí vem de bom é fruto do tanto que nos amam e nos querem. Contudo, uma vida tranquila e fácil (se é que isso existe!) não tem, necessariamente, de significar felicidade e auto-realização. Assim, o processo normal é que muitos até se zanguem connosco por causa das escolhas que fazemos, mas, depois, quando virem que somos felizes no caminho que escolhemos, serão os primeiros a abraçar-nos e a reconhecerem que estavam errados.
O medo de falhar ou desagradar aos que amamos não pode falar mais alto. A vida é um constante arriscar/falhar, por isso, porque não arriscar pelo que vale a pena? Quanto ao desagradar os que amamos, temos de ter presente que, quem nos ama, o que mais deseja é que sejamos felizes. Negar-nos a arriscar e a lançarmo-nos num caminho responsável e acompanhado de discernimento vocacional é empacotar a vida e boicotar toda a possibilidade de sermos felizes. Ora, isso nem de longe nem de perto é o que desejamos para nós nem é, tão-pouco, o que desejam os que nos amam!
Temos de abrir-nos à vida e ir além dos nossos medos! Temos de deixar de olhar os caminhos que sonhamos e ficar apaticamente a monologar «eu gostava de fazer isto».
O mundo está em alvoroço; a cada dia, tudo muda e as vozes de guerra impõem-se. Todos desejamos um mundo melhor, mas nada mudará se continuamos confortavelmente no nosso sofá. Isto não significa que vamos todos «salvar a humanidade», como super-heróis que não olham a meios para atingir os fins! Ao contrário, o que provoca mudança e faz o mundo melhor de maneira durável é mais pessoas assumirem o seu papel no mundo, deixarem para trás a mesquinhez dos medos e ousar viver em plenitude. Não é por acaso que a vocação é um dom precioso! É no acolhimento pleno do dom da vocação que cada um se torna capaz de mudar o mundo, não porque vai sozinho, mas porque caminha seguro com aqueles que o amparam, na certeza de que o caminho é de Deus e não dos homens. Desta perspectiva, o que poderá correr mal? Que obstáculo se afigurará tão grande ao ponto de travar a vontade de Deus? Onde está a nossa real vontade de viver uma vida em plenitude e ser feliz? A cobardia dos homens de bem é que leva à vitória dos ódios, das invejas e da sede de poder. Não fechemos, por isso, os olhos ao dom que aguarda ser recebido e lembremo-nos que «a esperança é ousada, sabe olhar para lá das comodidades pessoais, das pequenas seguranças e compensações que reduzem o horizonte, para se abrir aos grandes ideais que tornam a vida mais bela e digna. Caminhemos na esperança!» (Fratelli Tutti, n.º 55).
|