Por estes dias, enquanto olhava, desolada, para as notícias do mundo, para os horrores da guerra, da fome, das doenças e para o desespero humano que se vai alastrando em todo o mundo, dei por mim a pensar no desafio que é viver sem alternativas. De facto, como se poderá falar de vocação e de realização pessoal a quem tenta escapar com vida de situações que o ultrapassam? Como falar de plenitude de vida a quem só tem à sua volta miséria, morte e desolação? Os pensamentos foram sucedendo-se e se, num primeiro momento, o sentimento de empatia para com quem sofre levou a pensar que o exemplo de amor de quem, no terreno, se dá totalmente para ajudar à situação é já um caminho de reflexão futura para os que hoje sofrem; num segundo momento, vi-me assaltada por uma sensação de revolta. De facto, perante aqueles que vêem as suas casas e as suas vidas totalmente destruídas e na iminência de, na melhor das hipóteses (caso sobrevivam) ter de começar do zero, como podemos, no conforto do nosso sofá, verdadeiramente afirmar que as circunstâncias da nossa vida «não nos permitem fazer um discernimento e vivência vocacional autêntica»? Não quero dizer que o nosso dia-a-dia é fácil e que não tenhamos de travar batalhas difíceis para nos realizarmos, mas talvez sejamos todos atacados por uma espécie de cobardia egoísta quando toca a arregaçar as mangas rumo a uma vida autêntica (a única que nos fará verdadeiramente felizes).
Existem dois pontos-chave que parecem ser a pedra no sapato neste caminhar: o primeiro, é a visão limitada do eu (que só se consegue ver a si mesmo e, consequentemente, os problemas e bloqueios às suas vontades); o segundo é a ilusão utópica de ser herói (de conseguir fazer tudo sozinho, sem precisar de ninguém e, consequentemente, de viver uma autenticidade de vida, onde só o próprio bem-estar conta – afinal, se não há abertura para um discernimento acompanhado, como poderá haver abertura aos outros para a realização vocacional?).
A vocação como dom que se dá
Ninguém é feliz sozinho. Sabemos disso e parece que só queremos fechar os olhos a essa realidade. Queremos ser felizes, mas olhamos mais aos problemas do que às soluções. Queremos ir mais longe, mas pretendemos caminhar sozinhos. Até onde nos levarão os nossos caprichos e os nossos medos?
Muitas vezes somos tentados a pensar a vocação como algo que é nosso, que só a nós diz respeito. No entanto, não somos seres isolados. Ao contrário, «cada um é plenamente pessoa quando pertence a um povo e, vice-versa, não há um verdadeiro povo sem referência ao rosto de cada pessoa. Povo e pessoa são termos correlativos. Contudo, hoje, pretende-se reduzir as pessoas a indivíduos facilmente manipuláveis por poderes que visam interesses ilegítimos» (Fratelli Tutti, n.º 182). Viver a “nossa” vocação não é um acto individual (nem individualista); é, antes, uma resposta de amor a tudo quanto existe. De facto, ao realizarmo-nos, estamos a oferecer o melhor que há em nós: a nossa felicidade terá repercussões na vida dos outros, as nossas acções (porque autênticas) serão bênção para os outros. Consequentemente, a nossa vida não terá momentos de dádiva, de caridade/amor aos outros; toda ela será dádiva de amor. A vivência autêntica da vocação levar-nos-á «a amar o bem comum e a buscar efectivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une» (Fratelli Tutti, n.º 182).
Todos os dias somos confrontados com o mau humor, as frustrações e o mal-estar de quem, por alguma razão, não está realizado na sua vida. Qual efeito bola de neve, somos atingidos e, sem darmos por isso, ficamos também maldispostos e a disparatar com toda a gente. O mesmo se passa quando somos confrontados com pessoas amáveis e claramente realizadas na sua vida. Após este contacto, também nós nos sentimos predispostos a sorrir e a ir ao encontro das necessidades dos outros. Que efeito bola de neve queremos provocar com a nossa vida? Isto de viver não se compraz com facilitismos, mas, se assim for, não valerá a pena lutar em favor da plenitude e não apenas do que é satisfatório (o satisfatório quase sempre acaba mal).
Ser fecundo no amor
Quase sempre, a par do nosso sonho de vida, temos desejo de um mundo melhor, onde todos possam viver dignamente, felizes e com total respeito de uns pelos outros. Ora, nem os nossos sonhos se realizam se não dermos passos concretos para realizá-los; nem o mundo melhor se faz se continuarmos a andar ao sabor do vento, sem lutar para que isso aconteça. «A partir do “amor social”, é possível avançar para uma civilização do amor a que todos nos podemos sentir chamados. Com o seu dinamismo universal, a caridade pode construir um mundo novo, porque não é um sentimento estéril, mas o modo melhor de alcançar vias eficazes de desenvolvimento para todos» (Fratelli Tutti, n.º 183).
Os nossos sonhos são sempre pintados idilicamente, como se nada pudesse obstaculizar o nosso bem-estar ou o nosso comodismo. Sem darmos por isso, começamos a delinear o concreto dos sonhos. Aquilo que seria, à partida, o sonho de ser feliz torna-se um emaranhado de pressupostos (para ser feliz, preciso disto, daquilo, etc.) que se tornam o nosso objectivo (muitas vezes, cego) e deixam desvanecer o sentido último do sonho. O sonho está lá. A intuição sobre o modo como atingir a meta, também. Mas, para não circunscrever egoisticamente o sonho nem o transformar em vã ilusão, é preciso que este se torne caminho de amor – um caminho que só é fecundo quando deixamos que outros nele caminhem. O discernimento vocacional não é uma “sala de espera”, mas vivência concreta da própria vocação. Fazer um responsável acompanhamento de discernimento é já dar passos no caminho vocacional.
O dom da vocação é sempre vida partilhada e, por isso mesmo, vida fecunda para a humanidade. De que servem os sonhos se acabam fechados na gaveta do medo? De que servem os nossos anseios de felicidade se nos preocupamos mais com respostas rápidas, fáceis e sem dor? Ilusório será pensar que aquilo que desejamos para a nossa vida (toda a vida) se possa produzir de modo fácil e de um momento para o outro. Olhar responsavelmente para a vida e entrar no dinamismo da fecundidade do amor que marca e é essência de toda a vocação, é dar assentimento às exigências do amor, sabendo que «se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto. Quem se ama a si mesmo, perde-se» (Mt 12,24-25). Que alegria não será, então, viver (esfarrapar-se todo se for preciso) para que a vida seja verdadeira e digna de ser vivida! As flores e as árvores nunca iriam florir nem frutificar se tivessem a pretensão de o fazerem sem sofrimento (para as suas sementes, que têm de morrer para germinar) ou sem a ajuda de outros (sem a ajuda da terra e dos seus minerais, sem a ajuda da água, do sol, etc.). Tudo exige abraçar as exigências do amor, ir ao encontro e acolher a ajuda daqueles que melhor estão à altura de nos acompanhar para que também a nossa vida possa florir e dar frutos.
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