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09 junho 2022

Vocação: diálogo e caminho

Tempo de leitura: 9 min
O caminho do diálogo afigura-se como verdadeiro meio para o discernimento vocacional e a realização pessoal.
Susana Vilas Boas
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O tempo presente é cheio de inquietação, medo e dúvida quanto ao futuro. Primeiro, foram dois anos de uma pandemia que ainda continua a dizimar vidas em todo o mundo. Por causa dela, todos tivemos de nos fechar, isolar, mascarar e procurar reduzir ao máximo o contacto próximo com os outros. Depois, quando se começou a ver uma luz ao fundo do túnel, como se a pandemia começasse a querer dar tréguas, impôs-se a guerra. Uma guerra que já não se afigura como algo distante, que em nada influencia o nosso dia-a-dia e que apenas tomamos conhecimento por causa de uma flash news dos telejornais. Esta é uma guerra que toca o nosso quotidiano, impõe-se nas nossas televisões a todo o momento, causa impacto nas nossas cidades e, particularmente, faz-nos sentir consequências concretas ao nível humano e financeiro.

Guerra e covid-19 parecem ser realidades intransponíveis e, entre um inimigo visível e um invisível, a luta parece passar pelo fechamento e isolamento em si mesmo. Esta é a sensação generalizada, mas não, de modo algum, a forma de vencer a dureza dos tempos presentes. Ao contrário, no combate à covid-19, quem se isolou – protegeu-se; quem ousou travar um combate próximo dos doentes e da doença (médicos, cientistas, etc.), fez a diferença, salvou vidas e abriu portas a que hoje possamos olhar para a pandemia como algo que se encontra na recta final. O mesmo acontecerá com a guerra. Que conseguiremos isolados? Que sentido terá a nossa vida se apenas fecharmos os olhos com resignação e balbuciarmos um cobarde «não posso fazer nada»?

Este é um tempo em que os extremismos afloram: em favor da guerra, faz-se guerra; em favor da paz, muitas vezes também! De repente, parece que nos esquecemos que a vocação primeira do ser humano é “ser humano” e, por conseguinte, lutar pela humanização (e não isolamento individualista) das relações. Esta humanização passa por «aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contacto: tudo isto se resume no verbo «dialogar». Para nos encontrar e ajudar mutuamente, precisamos de dialogar» (Fratelli Tutti, n.º 198). O diálogo abre novos caminhos, possibilita ver mais longe e vencer os obstáculos sem esmagar ninguém; antes, ter na diferença uma mais-valia para atingir valores mais altos.

Diálogo e discernimento

Parece evidente que, perante o conflito armado e a consequente vaga de refugiados que diariamente chegam ao nosso país, se «torna necessário um diálogo paciente e confiante, para que as pessoas, as famílias e as comunidades possam transmitir os valores da própria cultura e acolher o bem proveniente das experiências alheias» (Fratelli Tutti, n.º 134). Isto é válido tanto para aqueles que são vítimas directas da guerra, como para aqueles que, não compactuando com os opressores, pertencem à sua nacionalidade (levando, consequentemente, com a discriminação e violência de todos).

Que tem isto que ver com a vocação? Pois bem, o discernimento necessário em qualquer caminho vocacional é sempre uma batalha interna e externa e, também ele, sem diálogo não consegue ser realizado. A primeira grande batalha é consigo mesmo. Consciente ou inconscientemente, todos somos “super-heróis” e “especialistas na matéria”: «Eu sei muito bem o que quero, não preciso de perder tempo nem andar a dar a minha vida a saber a ninguém!» Esta parece ser a primeira frase de ordem, quase sempre seguida de um «eu só não posso seguir este caminho agora, porque…». O individualismo e a presunção de si mesmo parecem ser o primeiro grande obstáculo. Falar com os outros, ver outros pontos de vista, admitir que outros nos possam ajudar e ver mais longe do que nós, é uma afronta de todo o tamanho! Sem nos apercebermos, entramos também nós – numa pequena escala – numa lógica de guerra: a nossa supremacia em relação aos demais! O nosso “não precisar de ninguém” acima da nossa própria felicidade! Este é o princípio de toda e qualquer guerra e, no caso vocacional, as consequências são similares: se não nos realizamos, a vida à nossa volta nunca irá florir, nunca será fecunda, nunca trará nada de autêntico e bom. Ao contrário, num caminho de verdadeiro diálogo, o discernimento desenvolve-se, os nossos sonhos e anseios confirmam-se ou ganham nova configuração e, sobretudo, com alicerces vocacionais seguros, lá onde residiam dúvidas, encontra-se maior segurança; lá onde imperavam obstáculos, encontram-se soluções; lá onde éramos frágeis, encontramos forças e acompanhamento!

 

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(© cathopic)

 

Caminho do diálogo e o diálogo como caminho

O caminho do diálogo afigura-se como verdadeiro meio para a realização pessoal. Não se trata de um caminho que conduz à realização, mas de um caminho que é – ele mesmo – realização pessoal. A vocação não é uma coisa, nem uma data, nem um marco importante da vida que se pretende atingir. Ao contrário, a vocação é um realizar-se, um fazer-se quotidiano ao longo de toda a vida. Não se pode ter a pretensão de pensar que acontecendo determinada coisa, tudo correrá sobre rodas; nem que a determinado momento, de repente, iremos avançar no caminho vocacional. De facto, a vocação vive-se como uma excelsa relação de amor, ou seja, não podemos simplesmente pensar: «A partir da data X irei começar a amar Y». Nem tão-pouco podemos acreditar que vamos amar no vazio, sem algo/alguém onde o nosso amor encontre relação – o amor isolado e individualista não existe!

Este é um percurso cheio de desafios, por isso, há que não fugir de algumas questões fundamentais, quando nos assaltar o medo de dialogar: como poderemos permanecer firmes e fiéis à vocação todo o tempo durante toda a vida? Como não desvanecer perante os obstáculos e dificuldades? Como fazer do caminho vocacional uma verdadeira vivência de amor e não um emaranhado de ilusões caprichosas ou fruto da nossa mera boa vontade? Sozinhos certamente não será possível fazer face a todos estes questionamentos! Mas há que pensar a resposta em duas frentes. Primeiro, ter presente que pelo diálogo com aqueles que pensam diferente de nós, encontramos solidez nos argumentos que nos fazem acreditar no caminho vocacional que pensamos ser o nosso (quando isso não acontece ou quando temos medo dos argumentos contrários, então, há muito trabalho de discernimento ainda pela frente). Depois, ter em mente que é pelo diálogo que travamos com aqueles que vivem segundo uma vocação que julgamos ser aquela que nos realizará, que encontramos respostas às nossas dúvidas, redescobrimo-nos e tomamos maior consciência do que somos e do que sonhamos ser. Com este acompanhamento de sincero diálogo, vamos encontrando soluções, onde só víamos problemas e percebendo que a vida é mais do que o aparente fatalismo dos obstáculos.

O medo da proximidade e o medo do diálogo são as bases de uma vida infeliz e não realizada. Arriscar sem segurança é imprudência e pode levar a consequências catastróficas. Ousar viver em vez de sobreviver é o distintivo dos audazes que fazem do diálogo caminho e aí marcham – nunca de forma isolada – construindo no dia-a-dia a plenitude de uma vida autêntica.   

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