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05 setembro 2022

Vocação: serviço e autenticidade

Tempo de leitura: 9 min
Face aos desafios do discernimento vocacional, é necessário ir ao encontro dos outros, abrir as portas para que a nossa vida se realize autenticamente e frutifique para o bem de todos.
Susana Vilas Boas
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(© 123RF)

 

Quantos são os desafios do nosso tempo! Ainda estamos às voltas com a pandemia (fala-se pouco, mas a situação continua a ter impacto nas nossas vidas) e a guerra parece ter-se instalado na nossa Europa, parecendo que poucos avanços para a paz têm vindo a ser feitos. Como combater esta escalada de violência e evitar a implementação de uma cultura de desconfiança e insegurança generalizada? Alerta-nos o Papa Francisco que «a paz real e duradoura é possível só a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e a co-responsabilidade na família humana inteira» (Fratelli Tutti, n.º 127). Portanto, desengane-se quem pensa que esta é apenas uma questão política ou que se circunscreve a um espaço geográfico. Sempre que a vida humana é ameaçada (seja na sua dignidade, seja na sua subsistência) isso torna-se uma responsabilidade para todo o ser humano. Assim, pensar a vocação nunca é algo que pode ser feito de olhos fechados para a realidade que nos circunda. Antes, todas as formas de vida, todas as “especificações vocacionais” implicam uma responsabilidade humana: a autenticidade de vida não é possível se não assumir uma postura de serviço e dádiva.

Já sabemos que não há vidas fáceis (embora nos pareça que a vida dos outros é sempre mais fácil do que a nossa) e ousar viver a vocação é perseverar num caminho em que o caminhar se faz a cada momento: em cada momento somos chamados a responder à vocação sendo, nessa resposta, configurada a nossa autenticidade de vida. Os horrores de larga escala desafiam-nos a reflectir e a agir, mas, muitas vezes, os maiores desafios à vivência da vocação residem “entre portas”, no nosso dia-a-dia e no concreto das situações que experienciamos directamente. Nestas, temos constantemente de pesar: de um lado aquilo que somos e que ansiamos ser; de outro, o nosso comodismo e o nosso desejo imediato de aceitação e validação dos outros. Este é um exercício árduo que sozinhos não pudemos fazer! Não porque somos limitados, mas porque somos humanos (e o humano nunca é, por essência, auto-referenciável).

Desafios ao discernimento vocacional

Muitas vezes ouvimos dizer que, com isto da guerra, parece que está a instalar-se a cultura do ódio. Porém, a guerra é apenas o resultado e a manifestação de uma cultura e identidade individualistas. A ânsia de ser auto-suficiente, não precisar de ninguém e ser melhor do que todos, torna-nos cegos e incapazes de viver plena e autenticamente a nossa humanidade. Os perigos do egoísmo estão sempre ao virar de cada esquina e, pouco a pouco, vai-nos tornando insensíveis ao sofrimento (e mesmo à alegria) dos outros; a opinião dos outros deixa de existir no nosso “quadro mental” (sabemos tudo e sempre muito melhor do que os outros). Sem nos apercebermos, reduzimos o nosso ser e a nossa existência ao nosso pequeno mundo e aos nossos caprichos, limitando também a nossa capacidade de vivência de relações profundas com os outros.

 

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(© iStock)

 

Nos dias que correm, uma das manifestações mais evidentes desta tentativa de manter boas relações sem esforço nem sofrimento é o modo como, cada vez mais, as redes sociais parecem dominar e determinar a nossa vida: sem a validação, o like dos outros, a vida parece deixar de fazer sentido! Até onde nos leva esta dependência? «Os meios de comunicação digitais podem expor ao risco de dependência, isolamento e perda progressiva de contacto com a realidade concreta, dificultando o desenvolvimento de relações interpessoais autênticas. Fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corporal e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana. As relações digitais, que dispensam da fadiga de cultivar uma amizade, uma reciprocidade estável e até um consenso que amadurece com o tempo, têm aparência de sociabilidade, mas não constroem verdadeiramente um “nós”» (Fratelli Tutti, n.º 43).

Fazer face aos desafios ao discernimento vocacional, é, antes de tudo, aceitar dar espaço e ir ao encontro de relações reais – de companheiros de jornadas que estarão lá para trilhar o caminho que temos de percorrer se, de facto, queremos viver uma vida autêntica. Estes companheiros, tendo já uma experiência de vida na vocação específica que pensamos ser a nossa, melhor nos ajudarão a manter o ritmo, a desbravar caminho e a curar as bolhas e feridas próprias de quem persiste em caminhar! Quem quiser ousar ser feliz, terá de ousar, antes de tudo, assumir a sua humanidade! 

A vida como dom de autenticidade e serviço

A vantagem ímpar de relações verdadeiras e autênticas que nos permitam discernir, caminhar e viver verdadeiramente a vocação, não é o “deixar de ter dores de cabeça”, mas o ter constante alimento para continuar a caminhar e segurança de estar a fazê-lo na direcção certa! O acompanhamento para o discernimento vocacional não é algo que deve ser entendido de um ponto de vista quase “profissional”. Ao contrário, é uma relação fecunda que implica criar laços para lá de qualquer sentimento de “tem de ser”! No mundo profissional, «um homem é chamado cada vez menos pelo seu próprio nome, cada vez menos será tratado como pessoa este ser, único no mundo, que tem o seu próprio coração, os seus sofrimentos, problemas e alegrias e a sua própria família» (Fratelli Tutti, n.º 193). Numa relação de caminho conjunto, a integralidade de pessoa é sempre respeitada e profundamente tida em consideração. Só neste respeito se torna possível autenticamente discernir quem somos e, à luz do que sonhamos ser, ver de que modo o caminho vocacional deve configurar-se. Estas são relações profundas e especiais que não se limitam à esfera humana. Deus – Senhor da Vida – está sempre presente e é luz para o caminho e para toda a jornada que é a nossa vida.

Com o nosso descentramento e abertura a ir ao encontro dos outros, abrimos as portas para que a nossa vida se realize autenticamente e que frutifique para o bem de todos. A paz e o mundo melhor que tanto desejamos não depende de acontecimentos extraordinários, mas da autenticidade de vida que ousamos assumir e viver. Viver a vocação e realizar-se não é, por isso, um acto egoísta nem uma falta de consideração para com as múltiplas opiniões que todos parecem ter sobre as nossas vidas, mas uma acção de amor para com Deus e a Humanidade.

Ao discernir seriamente a nossa vocação, ao fazer-nos acompanhar por quem também já percorreu esse caminho, encontraremos meios de responder àqueles que nos amam, mesmo que tenham opiniões diferentes de nós. Ao mesmo tempo, sairemos fortalecidos e tornaremos a nossa vida verdadeiramente fecunda e dom para que o mundo melhor não seja apenas um desejo ou uma utopia; antes se torne realidade concreta, muito para lá do impacto que pensamos que as nossas decisões de vida possam ter. O efeito bola de neve da nossa realização pessoal produzirá frutos muito para lá da nossa existência. Afinal, se Deus caminha connosco, tudo é possível! Então, porque não arriscar e ousar ser feliz? 

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