Por estes dias estive a rever o primeiro filme Kung Fu Panda (de 2008, sob a direcção de John Stevenson e Mark Osborne) e dei por mim a pensar como é que este filme de animação transcreve os desafios de um caminho de discernimento e vivência vocacional. O enorme e comilão Panda tem o sonho de ser um grande guerreiro Kung Fu. No seu horizonte estão os exemplos dos guerreiros que são diariamente treinados para defender a vila. No entanto, apesar da grande ânsia de viver o sonho, o Panda não faz mais que comer e servir às mesas no restaurante do pai.
Não vou aqui narrar a trama do filme, mas será importante adiantar dois pontos fundamentais: o primeiro refere-se ao facto de o Panda apenas entrar em discernimento vocacional quando vai ao encontro e se deixa acompanhar e orientar pelo grande Mestre Kung Fu. O segundo ponto refere-se ao modo como o Panda responde às dificuldades e à recusa do pai de que o filho vá por esse caminho. Estando pronto a desistir, o Panda compreende que não está só nesta luta e que, se a missão lhe é confiada, então ele só precisa de acreditar e abraçar/viver a sua vocação.
Com uma linguagem mais séria, o Papa Francisco fala destes dilemas e dificuldades no caminho, afirmando que «hoje podemos reconhecer que alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distracção, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade» (Fratelli Tutti, n.º 33).
As ilusões são muitas e, ao virar de cada esquina, há o desejo de ser super-herói sem esforço e sem precisar de ninguém. Este pensamento, mais ou menos consciente e assumido, conduz a duas perspectivas possíveis, sendo que nenhuma delas leva ao caminho da realização vocacional. Uma leva ao isolamento e à solidão, fazendo com que as dificuldades da vida se afigurem como problemas intransponíveis, não deixando lugar para acolher e viver verdadeiramente a vocação. Outra conduz a uma espiral crescente de egoísmo. De facto, se pensarmos que não precisamos de ninguém, a curto ou médio prazo, isso faz com que olhemos os outros como seres inferiores e descartáveis. Neste caso, não apenas ficamos impedidos de concretizar e realizar a vocação (já que a vocação é sempre dom e serviço), como também ficamos cegos face à realidade que nos envolve e face à nossa própria humanidade. Estes dois casos afiguram-se como “estradas sem saída” e portas fechadas à realização plena de vida.
Na estrada da vida, nenhum caminho é bem-sucedido de forma isolada, por isso, há que vencer as barreiras do medo e do egoísmo e ousar ir mais longe. Como alerta o papa, «no mundo actual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma Humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parecem uma utopia doutros tempos. Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco.
O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim» (Fratelli Tutti, n.º 30).
Apressadamente, mas nunca desesperadamente
Ousar viver a vocação é aceitar pôr-se a caminho, ir ao encontro de quem nos pode acompanhar e orientar na jornada, respondendo com esperança face às dificuldades. Neste caminho, que nunca é solitário, à urgência da vocação tem de haver uma “urgência na resposta”. Não é algo que possa ser adiado para sempre ou que possa ser decidido num momento de raiva, como fuga às situações adversas! A responsabilidade vocacional implica fazer um discernimento consciente, sendo que este só pode realizar-se de modo acompanhado. Neste caso, o que está em causa não é o “ser mais fácil” e nem sequer o que “é melhor para todos”! Antes, o importante aqui é ver para lá das circunstâncias e dos sonhos ilusórios, discernindo quem somos e quem sonhamos ser. Este é um caminho que não conhece atalhos, por isso, não vale a pena viver ansiosos, numa expectativa forçada para que tudo aconteça de um dia para o outro. A vocação não é algo para um dia (por isso não pode realizar-se de um dia para o outro). A vocação é vida (por isso realiza-se “realizando-se” / “vivenciando-se”).
A marca da esperança é aquela que alimenta o discernimento e o caminho vocacional. Deus aí está presente e a integralidade do ser humano também. Assim, os momentos de angústia e dificuldade nem terão uma resposta desesperada, mas uma resposta que, porque acompanhada, será sempre plena de esperança.
Vocação: “serenidade da urgência”
Um bom exemplo de vocação “apressada” mas não desesperada é o de Maria. Ela é um exemplo derradeiro de um “apressadamente” cheio de esperança! De facto, não é por acaso que as Jornadas Mundiais da Juventude, que aí estão a chegar, têm por mote: «Maria levantou-se e partiu apressadamente» (Lc 1, 39). De uma forma simples, e falam desta urgência vocacional de se desinstalar e não perder tempo, nem a olhar para as dificuldades, nem a viver a ilusão de que se pode fazer tudo sozinho.
A exemplo de Maria, os jovens do mundo inteiro partilham e rezam a oração oficial das jornadas comprometendo-se, orando: «Iremos apressadamente, sem distracção nem demora, antes com prontidão e alegria. Iremos serenamente». A oração oficial dá, precisamente, realce à atitude de Maria face à situação da sua prima Isabel. A missão/vocação vai muito para lá das dificuldades imediatas, dos receios e de todo e qualquer sinal de egoísmo.
Com Maria, aprendemos que, na vocação, se vive “a serenidade da urgência”. Ousar responder apressadamente à vocação, sem entrar numa lógica de ansiedade exacerbada, é pôr os pés ao caminho, com peso e medida: não se trata de não ligar ao que se passa à nossa volta e “fazer o que queremos”, mas, conscientes de que a vida é muito mais do que “ver passar os dias”, ir apressadamente ao encontro de quem nos pode acompanhar e orientar no caminho. Este é um passo que tem de acontecer sem demoras, se assim não for, ficaremos sempre na angústia de um “vou ter de fazer isto”, “um dia...”, “eu gostava, mas...”.
Apressadamente, há que dar passos, conscientes de que a serenidade é vivida sempre com a inquietude do entusiasmo, da alegria e até da dúvida. Não estamos sós no caminho! Então, porquê adiar a vida? Porquê angustiar-se com o que poderá ser ou terminar os dias a pensar no que poderia ter sido? O hoje da vocação é a tónica e o tempo ideal para a plenitude da vida. Não é por acaso que ao “hoje” chamamos “presente”. Esta é uma dádiva que temos de ousar receber sem receio e sem “compassos de espera”. Afinal, «se Deus está por nós, quem estará contra nós?» (Rom 8, 31).
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