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25 janeiro 2023

O encanto escondido da Cruz!

Tempo de leitura: 9 min
Em todas as edições da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) há uma espécie de João Baptista a anunciar a chegada de algo extraordinário: são os símbolos da JMJ – a cruz peregrina e o ícone mariano chamado Salus Popoli Romani.
P. Filipe Resende
Missionário comboniano
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(© JLisboa2023.org)

 

No outro dia, escutei de um transeunte no Porto que assistia à passagem dos símbolos da JMJ23 a seguinte expressão: «O quadro de Maria até vá que não vá! Mas uma cruz?! Não é a cruz sinal de derrota e sofrimento?!» É do símbolo da cruz que vamos hoje falar! 

A Jornada Mundial da Juventude e os seus símbolos

A cruz peregrina e o ícone Salus Popoli Romani acompanham desde há vários anos a realização da JMJ. Assim, nos meses antecedentes a cada JMJ, os símbolos percorrem em peregrinação vários lugares no mundo, mas sobretudo as dioceses do país onde se irá realizar a JMJ. Eles são assim anunciadores do Evangelho e acompanham os jovens, de forma especial, nas realidades onde eles vivem.

Em Portugal, os símbolos começaram a peregrinar na diocese do Algarve em Novembro de 2021, passando desde então por Beja, Évora, Portalegre-Castelo Branco, Guarda, Viseu, Funchal, Angra, Lamego, Santiago de Compostela (na peregrinação europeia de Jovens em Agosto), Bragança-Miranda, Vila Real, Porto, Setúbal, Diocese das Forças Armadas e de Segurança e este mês de Janeiro estão em Viana do Castelo.

Já são milhões de mãos aquelas que tocaram nestes símbolos um pouco por todo o mundo. E este toque é vivido de uma forma especial. Tem dado muitos frutos e tem mudado corações em variadíssimos contextos, latitudes e situações. Em África, por exemplo, estes símbolos tocaram o coração a jovens que sentiram a conversão das suas vidas numa geração não-violenta, encabeçando várias marchas pela paz. Foram tocados e transportados por milhares de pessoas, sobretudo jovens, que saudaram os símbolos da JMJ com os trajes típicos dos seus países. Passaram em países em guerra, ajudando a levar a reconciliação como foi o caso de Timor-Leste (cfr. www.lisboa2023.org).

O que é a cruz peregrina da JMJ23?

A cruz peregrina foi o único símbolo da JMJ até 2003. Neste ano, juntou-se-lhe o ícone mariano. A cruz mede 3,8 metros de altura e foi construída de propósito para o Ano Santo celebrado em Roma em 1983. Ela foi depois confiada aos jovens no Domingo de Ramos do ano seguinte pelo Papa João Paulo II. O objectivo era que chegasse a todo o mundo pelas mãos dos jovens. Desde então, esta cruz feita de madeira tem feito uma peregrinação por quase 90 países.

Já foi transportada a pé, de barco e até por meios mais raros como trenós, gruas, carros de bois e tractores. Já viajou pela selva, passou por igrejas, centros de detenção juvenis, prisões, escolas, universidades, hospitais, monumentos e centros comerciais. Recentemente, na zona de Baião também foi a uma discoteca. Para os milhões de pessoas tocadas por este símbolo tão simples, a cruz tem sido portadora e sinal de esperança em locais particularmente sensíveis. Em 1985, esteve em Praga, na actual República Checa, na altura em que a Europa estava dividida pela Cortina de Ferro, e foi aí sinal de comunhão com o papa. Pouco depois do 11 de Setembro de 2001, viajou até ao Ground Zero, em Nova Iorque, onde ocorreram os ataques terroristas que vitimaram quase 3000 pessoas. Passou ainda no Ruanda, em 2006, depois de o país ter vivido um genocídio fratricida por causa de uma guerra civil. Há por isso muitas vidas e histórias de vidas cravadas neste símbolo.

 

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(© JLisboa2023.org)

 

Amuletos e afins…

Para um símbolo ser eficaz ele tem de transmitir sem explicações adicionais a mensagem do que quer passar de uma forma sucinta. Mas precisamos sempre de acrescentar-lhe um contexto ou ser introduzidos na linguagem que o símbolo “fala”. O sinal ou o símbolo necessita de ser lido dentro do contexto para o qual foi produzido.

Ora, acontece que por vezes a cruz é usada e retirada do seu contexto. Passa assim a não ser usada para a finalidade para que foi criada. E passamos a usar a cruz como um amuleto, para nos proteger ou nos dar sorte, esquecendo que o símbolo (e a cruz neste caso!) perde o significado fora do seu contexto. Mais: a força de um símbolo só acontece quando eu vivo ou percebo o que significa de uma forma autêntica. Porque os símbolos, como algo material, não têm poderes mágicos em si mesmos. Assim acontece com a cruz! A cruz cristã só me servirá realmente se eu entrar dentro da linguagem em que ela aconteceu na vida de Jesus. Fora disso, será apenas um objecto mais sem significado como qualquer outro amuleto!

Cruz: sinal de esperança e vida…

Olhar para um pedaço de madeira envernizado e escavacado pelos tombos e peripécias dos milhares de quilómetros de viagem pode de facto não te dizer nada! Pode até ser ocasião de escândalo e loucura como o menciona S. Paulo na carta aos Coríntios (1,18-25). Assim acontece para quem não conhece a linguagem cristã e a assim chamada Teologia da Cruz ou não vê a mensagem escondida naquele pedaço de madeira.

Quando vivia na comunidade paroquial missionária de Kariobangi, uma paróquia comboniana na periferia da capital do Quénia, ficava sempre muito impressionado pela quantidade de cristãos e de não-cristãos a participar na via-sacra de Sexta-Feira Santa. Eram 4 a 5 horas a percorrer mercados a céu aberto, paragens de transportes públicos cheias de gente, bares de petiscos na beira da estrada… Foi aqui, nesta experiência, que vivi em concreto e na pele o que tinha aprendido nos estudos teológicos na faculdade sobre a Teologia da Cruz!

Foi o Martin Oduor que assim me resumiu o que eu tinha andado tantos anos a estudar sobre a cruz: «Eu participo e não posso faltar a esta via-sacra todos os anos porque é a forma de me recordar o quanto Deus me ama até se deixar matar injustamente numa cruz. É assim que ele me está a dizer como está solidário com a minha pobre situação. Mas é também a maneira de não me esquecer como eu também devo ser solidário e amar todas estas pessoas que encontramos nos lugares onde vamos com a cruz!»

Creio que, naquela tarde, senti os conceitos da Teologia da Cruz aprendidos em Teologia ao longo dos anos a sintetizarem-se naquelas palavras tão simples, mas tão profundas e «tão cheias de tanto».

Alguém escreveu um dia que para um verdadeiro encontro entre pessoas e para uma verdadeira construção da fraternidade necessitamos de «encontrar-nos na cruz».

O sofrimento é algo universal, que nos toca a todos! A cruz e o sofrimento de Jesus bem como o nosso é por isso um lugar de encontro – do nosso encontro com Jesus, dele connosco e de cada um de nós com os outros!

É na cruz que somos autênticos, aquilo que verdadeiramente somos – frágeis, despidos de manias e ornamentos! No sofrimento somos sempre aquilo que somos: vulneráveis diante de uma fractura no corpo, no coração, na alma, na mente. Ali na cruz, no nosso encontro autêntico, encontramos os outros na mesma condição. A cruz torna-se, assim, lugar de partilha: de vulnerabilidade, mas também de solidariedade entre todos os que ali se encontram.

É na cruz que encontramos um Deus frágil, manso e humilde, solidário com a nossa condição humana. É na cruz, no sofrimento, que podemos deixar de parte o que nos divide e, ao mesmo nível uns dos outros, isto é, todos vulneráveis e frágeis, poderemos dizer: «Lamento que estejas nessa situação! Como estás?» E estas atitudes e palavras são assim portadoras de solidariedade, de partilha, de paz e de companhia fraterna. E é por isso que a cruz é sinal de esperança e vida!  

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