Opinião
29 novembro 2023

Palavra que une todas as coisas?

Tempo de leitura: 4 min
«Comunhão»: simples e profunda palavra que parece unir todas as coisas.
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
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(© parroquiamadridejos/cathopic)

 

Existe uma palavra que liga o Sínodo à Laudate Deum: «comunhão». Conto pela primeira vez o modo como me surgiu uma ideia. Em 2008, estava em Lisboa a tomar banho e tinha voltado de Itália depois de um encontro extraordinário do EcoOne onde o filósofo Sergio Rondinara dera uma resposta a uma pergunta que desbloqueou uma enorme prisão mental em mim. – «Qual a marca de Deus-Trindade no Universo? A relacionalidade.» – A partir daquele momento compreendi, profundamente, como a intuição de que tudo estava relacionado com tudo era uma marca impressa pela Trindade na Criação. Dentro da minha mente: um big bang. Fez-se luz. Enquanto a água escorria pela minha cabeça, pensava: qual o ABC da relação entre pessoa e Natureza? Se a vem de antropocentrismo, uma relação centrada no ser humano (relação responsável pela crise ecológica); e b podia ser biocentrismo, uma relação centrada na vida em geral (relação responsável pela relativização da dignidade humana); o que podia ser o c senão «communiocentrismo»? Isto é, em vez de centrarmos a nossa acção em qualquer ponto ou pólo da rede que se relaciona com outros pólos, porque não centrá-la na própria relação entre pontos da rede? Na sua comunhão?

Quando partilhei esta ideia num grupo interdisciplinar de cientistas, filósofos, teólogos e curiosos da Natureza, os teólogos não a aceitaram porque (impressão pessoal) restringiam o amplo sentido da palavra «comunhão», receando (imagino) que desvirtuasse a experiência de receber Jesus na missa, o que me parecia um verdadeiro disparate. Desde então, tenho descoberto inúmeros exemplos da comunhão como mútua íntima imanência, berço da novidade neste universo. Daí que um grupo de cientistas tenha criado o blogue Wonderverse onde partilham inúmeros desses exemplos. Recentemente, porém, dei-me conta de que a intuição da comunhão como a base da vida física e espiritual deste universo estava já presente num teólogo passionista (infelizmente, não traduzido para português), o P.e Thomas Berry: «A Terra como organismo vivo não nasce do sentimento arbitrário de que seria uma aventura interessante da mente humana. Pelo contrário, nós somos impelidos a considerá-la como tal pelos nossos esforços na descoberta de nós próprios. É uma aventura mística, pois, o seu propósito último será atingir a comunhão final com aquela realidade última de onde todas as coisas são trazidas à existência.»

Por outro lado, como diz o P.e Sérgio Leal em O Caminho Sinodal com o Papa Francisco (Paulinas, 2021): «Sinodalidade, comunhão e unidade são palavras em estreita correlação. [...] Urge [...] utilizar a “linguagem da comunhão”, num dinamismo verdadeiramente operativo e incarnado, para que a Igreja seja sinal e instrumento de comunhão, pela vida comunitária que nela se manifesta e nela se gera.» E o modo como pode «falar» comunhão seria através de palavras como «proximidade, encontro, partilha e tantas outras palavras [que] desdobram e tornam mais compreensível a dinâmica de comunhão que se torna presente à luz da sinodalidade».

O futuro da Igreja e do nosso lugar na Terra talvez passe pela incarnação no quotidiano desta simples e profunda palavra que parece unir todas as coisas: comunhão

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