Retomamos esta interrogação, que já propus noutra ocasião (ver Além-Mar n.o 735), para ajudar a responder à pergunta que muitos de nós fazemos: por onde começar para vivermos a missão cristã com renovado sentido e vigor, num início de Ano Novo e num momento em que nos encontramos um pouco atordoados pelo impacto da crise dos abusos na Igreja? Por onde recomeçar, após a covid, que viu alastrar-se uma espécie de Cristianismo reduzido a religião natural, sem compromissos comunitários, sem empenhos morais, sem verdades para acreditar e viver, sem uma Palavra a escutar, sem Sacramentos a celebrar e uma Graça a acolher como dom divino? Cada um de nós terá a sua resposta à pergunta; eu arrisco-me a compartir a minha, certo de que, na variedade das nossas respostas, podemos encontrar um chão comum para construirmos a comunhão necessária a tão grande empresa como é ser cristãos-missionários hoje.
Imagino que todos estaremos de acordo em que é necessário recomeçar por nós, cada um por si mesmo, numa peregrinação interior que nos leve a unificar as nossa vidas como discípulos-missionários de Cristo. A crise dos abusos evidenciou onde nos pode levar a falta de unificação e de integração pessoal e levou-nos a descobrir que só poderemos contribuir eficazmente à missão cristã na medida em que vivemos identificados pessoalmente com o Evangelho. Este recomeçar por nós próprios ajuda-nos a colocar em foco a natureza da missão que nos é confiada: uma missão que é de Deus, que nos é confiada por Jesus e que tem no Espírito Santo, e não em nós, o seu protagonista.
A segunda conclusão em que poderemos estar de acordo é que a missão cristã é vivida por cada um de nós, por cada baptizado, numa grande variedade de formas e caminhos, de dons e carismas, consoante o Espírito Santo concede a cada um. O Papa Francisco tem-nos convidado a reconhecer esta diversidade, esta riqueza que edifica a Igreja e promete fecundidade à missão. Por isso, não nos deixamos vencer pelo desânimo porque o Espírito é a alma da missão e mantém-na viva, por uma grande variedade de caminhos que nos convida a percorrer. O desafio é dispor-se a fazer esse caminho, com generosidade e entrega.
A terceira conclusão é que a missão não tem como objectivo afirmar a Igreja ou afirmar-nos a nós próprios, mas sim afirmar as pessoas, o mundo e as criaturas como amados por Deus e chamados a uma transformação em Cristo, segundo o Evangelho. Sim, partimos de nós, assumimos um caminho concreto e pessoal, mas a meta da missão não somos nós próprios: são os outros, é o mundo a transformar segundo um desígnio de salvação oferecida por Deus a todos em Cristo.
Por onde começar leva também a pensar no lugar concreto ao qual Cristo nos envia. Em qual continente, país ou contexto? Certamente a missão cristã é universal e dispersa-nos no mundo como testemunhas de Cristo e a nossa resposta pode levar-nos a situações diferentes. Mas, ainda assim, a resposta une-nos numa intuição fundamental e dá-nos um critério imediato: no lugar e no tempo onde Deus me concedeu viver estou chamado a levar à perfeição a vocação, a missão que me confiou. (Para preparar este texto inspirei-me na conferência O Caminho do Homem de Martin Buber, onde o leitor pode encontrar inspiração para prosseguir a reflexão que aqui sugiro.)
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