Nas narrativas que temos vindo a construir, nestes últimos anos e em documentos eclesiais, a palavra «missionário» tem vindo a fazer um percurso de esvaziamento. Como a linguagem que usamos reflecte a vida e a condiciona, convém que ponderemos sobre o assunto. Falo de percurso de esvaziamento porque o termo «missionário» está a passar de substantivo a adjectivo. De substantivo, isto é, de palavra com um sentido próprio indicando uma pessoa portadora de um carisma eclesial (o da evangelização) passa a ser usado sobretudo como adjectivo; isto é, uma palavra que acompanha um substantivo, no sentido de lhe acrescentar uma qualidade ou uma característica.
Façamos alguns exemplos para tomarmos consciência da mudança em acto. Assim, fala-se de paróquia missionária, de pároco, de leigo, de religioso missionário, indicando uma postura na vida ou uma qualidade que os singulariza; fala-se de mentalidade missionária, para falar de mentalidade aberta e de atitudes comprometidas. Quando expomos a teologia da Igreja, dizemos que ela é missionária e que todos os baptizados são missionários. Não só têm uma missão a viver na Igreja, mas são uma missão neste mundo, como acrescentaria o Papa Francisco.
Nos textos do Dicastério da Vida Consagrada, onde foram colocadas as comunidades dos missionários (os institutos missionários e comunidades de vida apostólica), os missionários acabam vistos como consagrados que assumem uma das dimensões da vida consagrada, a dimensão missionária, e não sujeitos de um carisma particular que define a sua identidade. No documento final da sessão do Sínodo dos Bispos (Outubro de 2023), os missionários (como sujeitos de um carisma) são nomeados uma só vez; já na parte final, são vistos como um precioso recurso para promover o intercâmbio de pessoas e bens entre as igrejas particulares. Neste documento aparece um outro uso do substantivo «missionário»; aparece várias vezes a palavra «missionário» adjectivada com «digital». Refiro-me à expressão «missionário digital», imagino que uma criatura eclesial nova, a nascer na Internet e na blogosfera.
No documento sobre a reforma da Cúria (Pregai o Evangelho, 2022), o termo «missionário» é usado como adjectivo para caracterizar o serviço da mesma: temos, assim, uma cúria missionária, um papa missionário, etc. Mas, o missionário substantivo não aparece; e as comunidades de missionários/as nascidas na segunda metade do século XIX e que tiveram uma função determinante na evangelização recente da África, Ásia e Américas não são mencionados. Na reforma que se propõe, e que cria o Dicastério da Evangelização, estas comunidades (que historicamente nasceram sob a tutela da congregação para a Evangelização dos Povos e que têm a evangelização como carisma fundacional) são deixadas no Dicastério da Vida Consagrada, desaparecendo a missão como carisma próprio e os missionários como sujeitos desse carisma.
Para concluir, voltemos a ligar a linguagem à vida. Na Europa e na América, as comunidades de missionários estão a esvaziar-se de pessoas concretas e a viverem por inteiro o carisma da evangelização. Podemos perguntar-nos se a mudança de linguagem reflecte esta situação; ou, se pelo contrário é a linguagem a fazer desaparecer o carisma. Uma situação caricata; é como se deixássemos S. Paulo de fora nesta nova narrativa eclesial de muitos adjectivos e poucos substantivos.
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