Confesso que a história da Torre de Babel (Génesis 11) me deixava sempre com um certo embaraço. Dava a impressão de que a humanidade queria ficar bem unida, queriam usar todos uma só língua e construir uma torre – a famosa Torre de Babel – que chegasse ao céu: uma só obra maravilhosa de que todos se sentiriam orgulhosos.
E Deus, que intervém, derruba a torre, que fica em ruínas, e confunde as línguas de maneira que as pessoas já não se entendiam e acabaram por se dispersar por toda a face da Terra. Ficava-se com a impressão de que Deus desistia de continuar a relacionar-se com toda a humanidade – os descendentes do velho Noé – e começava “um programa novo”, só com Abraão e a sua família (Génesis 12) para dar origem ao povo eleito de Israel.
Gostei muito de encontrar uma perspectiva diferente em alguns estudiosos da Bíblia nossos contemporâneos. Eles descobriram que a Torre de Babel e a Tradição de Abraão afinal não são duas histórias diferentes, mas elementos distintos de uma mesma história que o próprio Deus faz avançar com grande paciência.
A gente de Babel, com a sua língua única e a torre altíssima, claramente desagradavam a Deus. Mas não pela busca de unidade ou pela grande engenharia... A “língua única” de facto significava o que hoje chamamos “pensamento único”, o querer que todos falem e pensem como nós, o querer homologar tudo e todos à cultura e ao pensamento de quem tem mais poder e dinheiro, de quem consegue “construir a torre mais alta”. Com o sinal da torre destruída, Deus mostra que essa forma de “união” imposta a todos pelos mais poderosos, essa uniformidade, não Lhe agrada, é contra a maneira como Deus gosta de ver a humanidade. Ele prefere uma grande variedade de línguas e culturas e religiões que, pouco a pouco, se encontram e dialogam umas com as outras, e se enriquecem mutuamente, sem que nenhuma pretenda dominar ou eliminar todas as outras. Como gosta de dizer o Papa Francisco, a união que Deus prefere é a “variedade reconciliada”.
É por isso que logo a seguir ao sinal da Torre de Babel (Génesis 11), Deus chama Abraão e Sara (Génesis 12) não para fazer deles um povo privilegiado, mas para que essa família e seus descendentes sejam no mundo um sinal da bênção de Deus para todas as famílias da Terra (Génesis 12,3).
Se há tanta variedade de povos e culturas e religiões no mundo, é porque “Deus não gosta de fotocópias”, ele prefere que cada pessoa, cada cultura, cada povo seja um dom sempre original e novo para todos os outros. A uniformidade universal não tem lugar no plano de Deus para a família humana. E a verdadeira grandeza, o futuro de cada um não será fruto do orgulho de querer “construir mais alto do que todos os outros”. Abraão e Sara vão ser para todas as famílias da Terra sinal de como Deus nos abençoa quando acolherem o seu futuro – o filho Isaac – como um dom precioso que Deus lhes confia.
Conta-se que, certo dia, um anjo olhou para o mundo e, preocupado, disse a Deus: «Criaste gente tão diferente uns dos outros!» E o bom Deus também olhou e respondeu: «Diferentes? Eu só vejo os meus filhos e filhas!»
Deus gosta da variedade, da união que vem das diferenças que se enriquecem. É por isso que as Torres de Babel, velhas e novas, acabam sempre por cair.
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