Opinião
01 setembro 2020

Forçados a fugir

Tempo de leitura: 4 min
«Nos seus rostos [dos deslocados], somos chamados a reconhecer o rosto de Cristo faminto, sedento, nu, doente, forasteiro e encarcerado que nos interpela».
Bernardino Frutuoso
Director
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O jovem africano, magro e assustado, olha fixamente para o telemóvel. Desce a escada da ponte nos braços de um marinheiro de fato-macaco azul e com uma máscara anticovid. A fotografia circula na Internet, publicada pelas ONG que trabalham há anos para salvar as pessoas que, desesperadas, fogem da África e do Médio Oriente. «Parece a Pietà» comentam nas redes sociais. A Pietà do Mediterrâneo estava a bordo do Talia, um cargueiro libanês que normalmente transporta gado e que em Julho passado recebeu cerca de cinquenta migrantes, resgatados em condições extremas e que tinham sido bloqueados a poucos quilómetros de distância de Malta.

Esta notícia – e acção de profunda humanidade do marinheiro-samaritano – lembra-nos a actualidade, o drama e o desafio da migração. Sabemos que existem múltiplas e complexas razões que levam as pessoas a migrar: conflitos, violência armada, pobreza, desigualdade, falta de emprego e oportunidades, alterações climáticas, insegurança urbana (68% das pessoas que integram as caravanas na América Central em direcção aos EUA fogem da pobreza, mas também dos gangues). Dizem os especialistas que a pressão migratória vai continuar a aumentar. De facto, de acordo com os dados da Organização Internacional para as Migrações, entre 2000 e 2019 os migrantes à escala global passaram de 150 milhões para 272 milhões (de 2,8% para 3,4% da população mundial).

Uma vertente da migração, cada vez mais relevante, é o fenómeno do deslocamento interno (segundo os últimos dados publicados pelo Internal Displacement Monitoring Centre, registaram-se em 2019 em todo o mundo 33,4 milhões de novos deslocados internos). É em relação a esse drama do mundo contemporâneo, «muitas vezes invisível, que a crise mundial causada pela pandemia de covid-19 exacerbou», que Francisco reflecte na mensagem para o 106.º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, que este ano se celebra no dia 27 deste mês de Setembro.

O ponto de partida do texto do papa é o ícone da fuga da Sagrada Família para o Egipto, em que «o menino Jesus experimenta, juntamente com os seus pais, a dramática condição de deslocado e refugiado marcada por medo, incerteza e dificuldades». Na hermenêutica que faz do texto de Mateus, o papa sublinha que em cada um dos deslocados do nosso tempo «está presente Jesus, forçado – como no tempo de Herodes – a fugir para Se salvar. Nos seus rostos, somos chamados a reconhecer o rosto de Cristo faminto, sedento, nu, doente, forasteiro e encarcerado que nos interpela». E podemos interpretar, igualmente, que esse relato bíblico nos lembra que todos somos migrantes e cada um de nós tem nos seus genes uma história de migração, temporalmente mais remota ou mais próxima.

Para 2020, além de relembrar aos cristãos os verbos acolher, proteger, promover e integrar, as quatro pedras angulares para uma acção eticamente comprometida que propusera na mensagem de 2018, o Papa Francisco acrescenta seis pares de verbos que traduzem acções concretas, interligadas numa relação de causa-efeito: conhecer para compreender; aproximar-se para servir; escutar para reconciliar-se; partilhar para crescer; co-envolver para promover; colaborar para construir. Verbos que conjugados pró-activamente na prática quotidiana dos discípulos missionários de Jesus ajudarão a derrubar muros e a alicerçar um futuro mais esperançado, fraterno e justo para todos. 

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Editorial
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