O Papa Francisco publicou a encíclica social Fratelli Tutti (Todos irmãos), que simbolicamente foi assinada em Assis no dia 3 de Outubro, festa de São Francisco, o santo do coração sem fronteiras. É um documento actual e profético, que pode ser considerado o «testamento político» do papa (ver páginas 16-21) – mas, certamente, não será o último deste pontificado.
As sociedades modernas, lembra o pontífice, foram fundadas com base nos ideais que a tríade liberdade-igualdade-fraternidade representava. No entanto, a fraternidade tem sido um projecto adiado, como expressa a encíclica no amplo e gritante diagnóstico que faz do mundo contemporâneo. Patologias sociais que o papa tem denunciado em múltiplas ocasiões e que designa como «sombras do mundo fechado» (as quais a pandemia e a metacrise estão a tornar visíveis e acentuar mais): clamor dos migrantes e refugiados, populismos, nacionalismos, individualismos desumanizadores, racismo, novas escravaturas, tráfico de seres humanos, conflitos e guerras, violência sobre mulheres e crianças, pena de morte, desigualdades sociais, colonização cultural, capitalismo selvagem, drama ecológico, incompreensão do mundo do trabalho e dos trabalhadores.
Apesar deste horizonte sombrio, Deus continua a surpreender-nos e a derramar na Humanidade sementes de bem. E é com essa visão e esperança activa que Francisco propõe a todas as pessoas de boa vontade a fraternidade e a amizade social, não somente como atitudes pessoais, mas como atitudes políticas e estruturais. Elas são as regras de ouro que permitem «abrir o coração ao mundo», materializar o respeito pelos direitos humanos, exercer a solidariedade como um serviço aos mais vulneráveis da sociedade, defender os direitos dos povos oprimidos, lutar contra as causas da injustiça, da pobreza estrutural, da desigualdade, da falta de trabalho e da negação dos direitos sociais.
Todavia, não existe um caminho eficaz rumo à fraternidade universal e à paz social sem a dimensão política, que procura o bem comum. Uma política atenta, particularmente, às necessidades dos irmãos e irmãs feridos que sofrem nas «bermas dos caminhos». Para os crentes, essa práxis é indicada pela parábola do bom samaritano, «ícone iluminador» da opção evangélica pelos pobres e do compromisso na transformação do mundo. O pressuposto da dignidade sagrada e indelével de cada ser humano é a base que nos permite superar as atitudes de indiferença e aporofobia – neologismo cunhado pela filósofa espanhola Adele Cortina no livro Aporofobia, a rejeição do pobre –, construir laços sociais, abrir canais de diálogo e participação social e exercer a caridade, que é o coração do espírito da política.
A recepção da encíclica contribuirá, decerto, para que a Humanidade reaja «com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras». Assumindo a dinâmica da fraternidade e percorrendo esse caminho com audácia e criatividade, é possível reconfigurar as práticas sociais, eclesiais, culturais, económicas e políticas. Só a revolução da fraternidade permitirá a construção de uma nova ordem mundial, repensar o futuro e realizar o sonho comum de dignificação de todos.
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