Opinião
19 março 2021

A sociedade do descanso

Tempo de leitura: 6 min
O descanso é o lado contemplativo da cultura que nos leva a entrar em disperfoco, despertando o lado profundo e pleno de uma vida que vale a pena viver.
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
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(Foto: © Janko Ferlič em Unsplash)

A produtividade domina muito do pensamento actual sobre a relação entre uma pessoa e o seu trabalho. Quando trabalhamos sentimo-nos úteis e, consequentemente, quando deixamos de trabalhar, para muitas pessoas, a vida faz menos sentido. Assim, colocar o sentido da vida somente na utilidade produtiva do trabalho que uma pessoa faz limita esse sentido. E, corremos o risco de esquecer que os momentos inúteis fazem, também, parte do sentido da vida, tornando-se — por assim dizer — úteis na compreensão desse sentido. Uma sociedade centrada na sua capacidade produtiva tende a viver mais do poder e do fazer, do que do amar e do ser. É uma Sociedade do Cansaço quando poderia ser uma Sociedade do Descanso.

O filósofo Byung-Chul Han reflecte sobre “A Sociedade do Cansaço”, caracterizando-a como uma sociedade da produção e da disciplina, dominada pela negatividade, gerando pessoas deprimidas e frustradas. Recordo pessoas próximas que não conseguem descobrir o que o período da reforma lhes pode oferecer por pensarem que somente o trabalho lhes dá uma razão para viver. E o resultado depressivo dessa experiência advém do cansaço de poder e fazer e como diz Han — «o sentimento de já não ser capaz de poder conduz a uma autocrítica destrutiva e à autoagressão.» Poderíamos pensar que as pessoas que vivem assim, depressivas, precisam de descanso. Mas talvez a própria sociedade que preza tanto a produtividade, precise de descobrir a capacidade para o descanso como um valor produtivo.

Uma das ideias mais comuns de alguém que se considera produtivo é a capacidade de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Mas a atitude multitarefa é um mito revelado pelos neurocientistas. Essas pessoas são, sim, capazes de mudar de tarefas tão rapidamente que sentem estar a fazer duas ou mais coisas ao mesmo tempo. Na prática são pessoas que fragmentam de tal modo a sua atenção que, enquanto o corpo é jovem, aguenta, mas depressa se desgasta e podem atingir um estado precoce de exaustão. Descobrir o valor do descanso torna-se essencial para uma vida plena e profunda, mas importa pensar o que há a mudar nos estilos de vida para transformar a sociedade a partir da nossa interioridade usando o descanso.

Han refere um aspecto interessante a este respeito. Diz que — «a vida cultural da humanidade (…) só é possível e só se desenvolve quando existe uma atenção profunda e contemplativa. A cultura pressupõe um espaço propiciador da atenção profunda. A atenção profunda tem vindo a ser cada vez mais suplantada por um tipo de atenção completamente diferente — a hiperatenção. Esta atenção dispersa ou distraída é caracterizada pela mudança brusca do foco da questão, pela alternância constante de tarefas, fontes de informação e processos.»

Não sei se estou plenamente de acordo com Han na relação entre a expressão hiperatenção e o modo como a define. Uma atenção dispersa e, por isso, fragmentada, é como pegar numa fatia de bolo e esfarelá-la em migalhas espalhando-as pela mesa. Não me dá a impressão de hiper-, mas de hipoatenção, isto é, uma carência de foco. Mas a observação que Han apresenta para recuperar, sim, a hiperatenção (ou hiperfoco) que me parece ser a atenção plena vivida no presente e sensível à descoberta de coisas novas, é o «tédio profundo propiciador do processo criativo.» Ou seja, na prática, o sentimento de tédio que por vezes sentimos quando nada temos para fazer, ou quando estamos fartos de fazer alguma coisa e, por isso, cansados, serve de sinal de alerta para entrar no modo que o autor Chris Bailey designa por disperfoco no seu livro “Hiperfoco”.

O disperfoco implica deixar a mente divagar. Faz-me pensar no quanto “divagar” se vai ao longe. E este modo permite três coisas: 1) definir intenções e planear o futuro; 2) recarregar a energia mental para pensar, e; 3) incentiva a criatividade. De facto, não é nos momentos de descanso que provêm as ideias que nos entusiasmam? Ou nos momentos de pausa a caminhar, estender a roupa, ou arrumar a cozinha que se desbloqueia aquele problema que nos encravava o trabalho?

O descanso não serve somente para recuperar dos períodos de cansaço depois de sermos produtivos. O descanso é o lado contemplativo da cultura que nos leva a entrar em disperfoco, despertando o lado profundo e pleno de uma vida que vale a pena viver.

Em “Humano. Demasiado Humano”, Nietzsche dizia que «a falta de serenidade conduz a nossa civilização a uma nova barbárie. Nenhuma era valorizou mais os seres activos, isto é, os inquietos. Uma das correcções que urge, pois, fazer ao carácter da humanidade é desenvolver, e em grande medida, o seu lado contemplativo.» Curioso encontrar neste filósofo ateu a raiz da experiência de Santo Agostinho cujo coração permanece inquieto enquanto não repousar em Deus, em quem encontra a serenidade que lhe falta. A vida espiritual desenvolve em nós o lado contemplativo da vida e pode ser o gérmen transformativo de uma sociedade do cansaço em sociedade do descanso. 

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