«A atenção é o início da devoção.» (Mary Oliver, poetisa americana)
Quantas vezes não páro de escrever para levantar a cabeça e voltar o meu olhar para a paisagem em frente. Da janela contemplo a floresta diante de mim. Desfocada por não ter os óculos postos e ser míope. Mas a sala tem outra janela. Essa está aberta e o estore fechado. Através das frechas das ripas escuto os sons que a natureza e a cidade oferecem. Respiro o ar fresco da manhã. Sinto o aroma húmido da chuva caída na noite anterior. Não será o canto do pássaro, a frescura do ar e os aromas naturais uma forma de oração da natureza pelo Tempo da Criação?
Queria gravar uma crónica para a rádio Canção Nova. Como tinha ido buscar um amigo que chegava de comboio, decidi gravar no Choupal. Se a crónica falava da contemplação da escuta pela maior atenção aos sons, que espaço melhor do que a própria natureza como ambiente a registar, também, naquela gravação? Comecei. Tudo era perfeito. As palavras fluíam da boca ao som do canto dos pássaros e da brisa. Mas, a um dado momento, o meu discurso parece ter atraído a atenção de alguns seres mais curiosos. Moscas.
O zumbido não me largava. Quase que deixava cair o tablet com o texto da crónica que segurava na mão esquerda por ter a mão direita ocupada com o telemóvel onde a gravava. Finalmente, terminei. Senti ter falado depressa demais. Mais tarde, pensando naquela experiência, não seria o zumbido da mosca a sua forma de rezar comigo pelo Tempo da Criação?
Rezar pelo Tempo da Criação não poderia ser feito com os outros membros da família da Criação como os animais, as árvores e até os fenómenos físicos deste mundo como o vento e a chuva? Enquanto me colocava esta questão, começaram a ressoar dentro de mim as palavras que S. Paulo dirigiu aos Colossenses (1, 16) — «todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele.» Todas as coisas. Não algumas e as que têm consciência (ou deveriam ter) daquilo que estão a pensar e fazer. Porém, fico a pensar que muitas pessoas ao lerem esta sugestão de que o vento também reza é um “pensamento do desejo” (wishful thinking) desagregado da realidade. Mas será que rezar implica, necessariamente, cogitar?
O vento não pensa. É um fenómeno físico. Como pode rezar?
«O vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito.» (Jo 3, 8)
O vento pode não pensar, mas através de uma metáfora, atribuímos-lhe vontade e voz. Não é o vento por si mesmo que reza, mas é a interacção entre o vento e o meu coração (entenda-se: todo o meu ser) que faz do seu soprar um modo desse rezar. É dessa relação interior escondida entre nós e a natureza que se compreende a razão do ortodoxo John Zizioulas (que apresentou a encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco) ter sugerido sermos sacerdotes da criação. Isto é, aqueles que, vivendo uma relação criativa e íntima com o mundo natural, elevam «todas as coisas» a Deus. Todas as coisas rezam se o nosso coração se abrir a isso. Mas, e se o coração estiver fechado?
Fechado, a natureza é bela, mas não reza. Uma pedra é uma pedra. O vento é vento. Os sons dos pássaros são sons, umas vezes melodiosos, outras vezes ensurdecedor, mas já não nos emociona. Creio que a digitalização da nossa vida pode não ter endurecido o nosso coração, mas adormecido. Neste Tempo da Criação, há que despertar.
Não preciso de muito. Se experimentarmos focar a nossa atenção num som em particular, ou numa observação particular, ou cheiro particular, será um primeiro e simples passo. Pois, não tem toda a devoção o seu berço na atenção?
«A atenção, completamente sem misturas, é oração.» (Simone Weil)
Que este Tempo da Criação / seja a oportunidade que damos à imaginação / de entrar em oração / através de uma maior atenção / à emoção / que brota de um coração simples.
Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao