Opinião
14 dezembro 2022

Saciar a sede em tempo de Natal

Tempo de leitura: 5 min
Que neste Natal saibamos lançar sementes de profundidade regadas com gotas de água de atenção, interesse e escuta sincera.
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
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A água é um elemento natural essencial para a vida de todo o planeta. Num relatório recente das Nações Unidas, estima-se que cerca de 5 mil milhões de pessoas possam experimentar pelo menos um mês de escassez de água em 2050. Num planeta feito de água, isso não é estranho porque nem toda a água é apropriada ao consumo, mas o estranho é sermos tão lentos a mudar os nossos comportamentos.

Com o aquecimento global, o derretimento do gelo nos pólos terrestres implica que mais água em estado líquido pode absorver a energia que vem do Sol e, assim, alimentar furacões ou aumentar a quantidade evaporada que há-de voltar a condensar e cair como chuva intensa em alguma parte do mundo. O aquecimento global acentua as assimetrias de haver numa parte do mundo uma seca, enquanto noutra parte se experimenta uma monção. É tudo tão global que nos sentimos pequenos. O que podemos nós fazer?

Se cada ser humano fizesse a sua parte e mudasse de comportamento, de modo a diminuir o impacto ambiental da sua pegada ecológica pessoal, seríamos 8 mil milhões a fazê-lo. Isso produziria um efeito em massa, assim como o antropoceno mudou já a face do nosso planeta. Cada mudança pode ser partilhada entre nós e inspirar outros a mudar, gerando um efeito em cadeia que aspiramos poder surtir algum efeito até ao ano 2050. Eu comecei pela água de lavar os dentes.

Não é que sentisse estar a gastar muita água quando lavava os dentes, mas sempre que molhava a pasta no início, lavava a escova no fim, ou usava água para bochechar, a torneira estava aberta. A minha irmã é médica dentista, e após uma consulta notei que, habitualmente, o bochechar depois de um procedimento usa um simples copo. E nessa altura lembrei-me que usava um copo quando era miúdo. Logo, resolvi voltar a esse hábito. Sinceramente fiquei chocado pela pouca quantidade de água necessária para fazer tudo o que precisamos quando lavamos os dentes. Mais chocado fiquei por, várias vezes, em vez de usar a água do copo para lavar a escova, sem pensar, abria a torneira por ser um hábito incrivelmente enraizado nas minhas rotinas. Isso levou-me a pensar quantos outros hábitos teria em que desperdiço água e não me dou conta disso. Mas a água desperdiçada não se esgota na sua expressão física. Também a água que frequentemente usamos como metáfora pode ser desperdiçada.

No diálogo com a Samaritana, Jesus que pede "dá-me de beber", depois, oferece-lhe uma água viva que é Ele próprio. A ideia subjacente à oferta de Jesus é a do saciar da sede que todos temos das coisas que hidratam a vida profunda e plena, a vida interior. A água que sacia a interioridade dos sedentos do século XXI é, também, a atenção que dedicamos uns aos outros e o interesse que demonstramos por cada um. A água da atenção e do tempo escasseiam há algum tempo e daí a pressa que todos temos em fazer tudo e mais alguma coisa com se a vida nos escapasse por entre os dedos. A pressa consome muito da nossa atenção, assim como as inúmeras tarefas que preenchem as nossas agendas.

O risco da alienação das pequenas necessidades de hidratação física, mental e espiritual é o de sofrer longamente por um estilo de vida pautado por notas ininterruptas sem pausas. Até no humor, a pausa do humorista é a diferença entre o que disse e o tempo que levamos a nos apercebermos da sátira que nos faz rir. Precisamos de pausas para hidratar a mente e o coração. E precisamos de uma maior consciência de que um pouco de água é o suficiente para saciar a nossa sede.

Em tempo de seca aspiramos pela água. Em tempos de inundações aspiramos pela secura. Mas a quantidade de água que precisamos para viver corresponde ao que é essencial para saciar a sede de uma vida plena e profunda. No período de Natal que se avizinha, a maior sede não será de prendas, mas de autêntica presença. Uma presença que escuta e não se distrai. Uma presença atenta ao que o outro está a viver. Não há smartwatch que produza o mesmo efeito que um abraço forte e sentido. O primeiro irá avariar um dia, mas o segundo ficará para sempre. Que neste Natal saibamos lançar sementes de profundidade regadas com gotas de água de atenção, interesse e escuta sincera.

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