Coração é outra dessas palavras-chave que nos abrem a uma dimensão fundamental da vida e da fé dos cristãos. Talvez seja por isso que São João, no seu evangelho, apresenta a imagem do coração trespassado de Cristo como o símbolo de toda a vida e missão de Jesus, que ali se completa, com o dom da sua vida, na cruz.
Com o tempo, os cristãos gostavam de ver ali mesmo – o coração de onde brota sangue e água – a nascente da vida da Igreja: a água do baptismo e o sangue da eucaristia. A atenção dos cristãos a este símbolo – o coração de Cristo – tornou-se particularmente intensa a partir das extraordinárias experiências espirituais de uma monja francesa – Santa Margarida Maria Alacoque (século xvii) – que «viu» Jesus a mostrar-lhe o seu coração dizendo: «Olha o coração com o qual Deus amou o mundo.»
Naquele tempo, o movimento espiritual do Jansenismo tinha levado muita gente a considerar a nossa realidade humana concreta – o nosso coração de carne, como algo sem valor e mesmo pecaminoso, diante de Deus. Deus era visto como «demasiado santo» para ter algo em comum connosco. Aqueles altares em que o Santíssimo Sacramento era colocado no cimo de uma «escadaria», a grande distância dos cristãos, de algum modo reflectiam esta mesma mentalidade.
Com as «visões» de Santa Margarida Maria, Jesus veio lembrar que Ele também tinha um coração humano e que foi na sua vida concreta – humana como a nossa – que Ele nos trouxe e nos transmitiu o amor imenso de Deus Pai. Podemos pensar que essa é a razão pela qual São João apresenta o coração de Jesus, trespassado – aberto, na cruz (Jo 19,33-34) –, precisamente quando Jesus deu a sua vida amando de modo total e irreversível. É como se aquele coração aberto fosse a melhor síntese da vida e da missão de Jesus: transmitir o amor de Deus através da sua vida humana totalmente oferecida.
É bonito ver como, séculos mais tarde, S. Daniel Comboni vai encontrar precisamente nesse mesmo símbolo a inspiração e a força para a sua missão na África. Ele mesmo conta como estando um dia em profunda meditação, na Basílica de São Pedro, em Roma (24 de Setembro de 1864), contemplando a imagem de Cristo na Cruz, com o «coração aberto», ele se sentiu como que puxado para dentro daquele coração e, «olhando de lá de cima», viu na África uma multidão de gente que um dia se haviam de tornar nossos irmãos na mesma fé. Ao mesmo tempo sentiu como que uma chama de amor e de fogo que o empurrava para a África, para ir para lá partilhar com todos o amor de Deus que tinha experimentado no coração de Cristo.
Essa experiência extraordinária de Daniel Comboni mostra o Coração de Cristo como o centro e a nascente espiritual onde podemos «aquecer o coração» para sermos enviados a levar o evangelho de Jesus a todos.
Qualquer que seja a nossa missão específica como cristãos, o Coração de Cristo vem lembrar-nos que a missão dá fruto abundante quando é feita com coração; não um frio «passar um recado», ou ensinar uma doutrina, mas oferecer o Evangelho através de uma vida profundamente marcada pela amizade e pelo amor nas suas expressões mais humanas: corações humanos em sintonia com o coração de Deus.
|