Com a data de 28 de Maio de 2023, o Dicastério para a Comunicação publicou (online) um documento que poderá ser um marco na reflexão do impacto que a vida digital tem sobre a vida espiritual. Dos vários pontos, um que me chamou a atenção foi a proposta do silêncio como forma de “desintoxicação digital”. Não sei se estou plenamente de acordo com o modo como foi abordado.
No n.º 35, a mensagem intitulada “Rumo à presença plena” afirma: «Com este excesso de estímulos e dados que recebemos, o silêncio é um bem precioso, porque garante o espaço para a concentração e o discernimento. O ímpeto de procurar o silêncio na cultura digital eleva a importância de se concentrar e de escutar. Nos ambientes educacionais ou de trabalho, assim como nas famílias e comunidades, há necessidade crescente de nos desligarmos dos dispositivos digitais. Neste caso, o “silêncio” pode ser comparado a uma “desintoxicação digital”, que não é simplesmente abstinência, mas ao contrário uma maneira de se comprometer mais profundamente com Deus e com os outros.»
Existe uma expressão diferente de “desintoxicação digital” que se adequa mais ao efeito positivo e fundamental que o silêncio na cultura digital realiza no caminho para a “presença plena”: o desatafulhar digital.
No seu livro “Minimalismo Digital”, Cal Newport, professor de Ciências Informáticas na Universidade de Georgetown nos EUA, chama a atenção que num processo de “desintoxicação”, o objectivo consiste em eliminar (não abster) o consumo de algo que possui um efeito viciante em nós, como seria o caso do álcool e das drogas. Porém, silenciar a cultura digital não elimina os estímulos que nos desfocam e superficializam e, por esse motivo, não a “desintoxica”. A expressão só se aplicaria se por “intoxicação” nos estivéssemos a referir a comportamentos tóxicos (expressão dos jovens), o que não é o caso porque o silêncio surge como resposta à necessidade de espaços de concentração, discernimento e escuta no âmbito digital, sem eliminar esse âmbito. Por fim, usar apenas a palavra silêncio torna a mensagem ambígua. Pois, existem diferentes contextos para o silêncio e, neste caso, a mensagem refere-se especificamente a um acto em contexto digital, pelo que a expressão mais adequada parece-me ser “silêncio digital”.
Assumindo que nos referimos ao “silêncio digital”, o documento diz que este é uma maneira de se comprometer mais profundamente com Deus e com os outros. Mas se eu for uma pessoa activa na oração e na inter-ajuda a quem mais precisa, estarei a fazer “silêncio digital”? Não compreendo onde poderia estar a ligação. Porém, penso que vale a pena reflectir sobre o valor do “silêncio digital” rumo à presença plena que, na minha opinião, antecede qualquer compromisso mais profundo com Deus e com os outros.
Na linha do “desatafulhar digital”, um silêncio digital potencia o desencadear de uma transformação perene na vida digital, enquanto parte da minha vida plena, sintetizando o que é real com o que é virtual. Qualquer pausa dos dispositivos digitais, desligando-os, é insuficiente se quando os ligarmos de novo voltarmos aos comportamentos distractivos e alienativos de antes. A pausa é importante como primeiro passo no caminho do silêncio digital. Posteriormente, o silêncio digital serve para explorarmos e descobrirmos quais as actividades e comportamentos que nos transformam e têm significado para nós. Por fim, ao voltarmos a interagir na vida digital com os outros, convém verificarmos se as tecnologias que voltamos a usar revertem ou não a nossa transformação.
Um exemplo. Imagine que durante a pausa do desatafulhar digital (por 30 dias, como sugere Newport), (re)descobrimos o gosto pela leitura de espiritualidade que nos desperta para a presença de Deus nos aspectos mais comuns da nossa vida. Não tenho dúvidas de que isso gera transformação numa pessoa porque a aproxima de Deus no quotidiano. Quando sairmos da pausa, e reintroduzirmos a tecnologia digital, será que o tempo experienciado com a leitura de espiritualidade diminui? Se sim, o sensato seria eliminar essa tecnologia (por exemplo, a presença numa rede social). Porém, aqui está o essencial do silêncio digital.: é uma maneira de amadurecer no desapego digital.
Muitas pessoas parecem estar dependentes da inebriante presença digital porque experimentam a solidão quando uma boa parte das pessoas que fazem parte da sua rede de relações local não demonstram muito interesse pelo que lhe interessa. A “presença plena” compõe-se de solitude, como oportunidade de dedicar momentos da vida ao encontro com a nossa interioridade, mas também se compõe de comunidade quando experimentamos fazer parte de uma família de irmãos em Cristo. Como está o acolhimento nas nossas comunidades paroquiais e movimentos? Como acompanhamos cada irmão em Cristo, irmão em Humanidade, irmão na Criação, ao longo da caminhada espiritual que fazemos juntos?
O silêncio digital vivido seriamente ajudará a encontrar respostas. A conversão relacional proveniente de um desatafulhar digital é o que nos pode levar a experimentar a presença de Deus no meio de nós e uma luz necessária no deserto de distrações que vivemos.
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