Reportagens
07 abril 2019

O sonho de Camille

Tempo de leitura: 11 min
Se não fosse sacerdote, seria professor. Está convencido de que a educação é a resposta para muitos dos problemas de que padece a sociedade chadiana, especialmente as mulheres.
Javier Sánchez Salcedo
Jornalista
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O seu nome é Camille Manyenan Nodjita. Tem 47 anos, é sacerdote jesuíta e fã do Real Madrid. Religião e desporto, dois mundos que têm muito que ver com quem é e o que faz. Vive no Chade, a sua terra, e trabalha no Colégio São Francisco Xavier, a 15 quilómetros da capital, N’Djamena. É seu director e lecciona Filosofia. A sua história com os Jesuítas começou quando se matriculou no Colégio Charles Lwanga, na cidade de Sarh [a maior cidade no Sul do país], para frequentar o secundário. Ali as coisas tiveram impacto nele. Uma, a convivência no internato com rapazes chegados de diversas partes do país. A outra, o estilo de vida dos religiosos. Franceses, espanhóis, italianos, chadianos e de outros países da África viviam como irmãos um ideal que a ele cada vez o atraía mais. Até que decidiu ser um deles.

 

Um oásis em Toukra

Camille nasceu em Bangul, uma localidade no Sul do Chade cujos habitantes são de etnia day. Durante a infância, o país foi cenário de uma cruenta guerra civil. Muitas pessoas fugiram das cidades para se refugiarem nas pequenas localidades. O trabalho agrícola tornou-se difícil e a comida escasseava. Conta que na época das chuvas, entre Junho e Agosto, passar fome era o habitual. No lar de Camille viviam os seus irmãos, os seus primos e outras pessoas que o seu pai acolhia. Ao todo, eram mais de vinte debaixo do mesmo tecto. Ali partilhavam conversas, penas, alegrias e o pouco sustento que conseguiam. Se queriam comer, tinham de estar ali precisamente no momento em que Madeleine, a mãe de Camille, acabava de cozinhar. Não convinha distraírem-se, porque não se guardava nada para os ausentes. A rapidez era a chave. E havia uma regra de ouro: proibido queixar-se dos alimentos que estavam na mesa. Todos permaneciam sentados em volta de Michel, seu pai, esperando que ele desse o primeiro pedaço. Depois, com a celeridade necessária, iam à vez do recipiente do boule – o prato nacional, uma pasta feita com painço – ao do molho.

Camille lembra-se de que o seu pai era exigente e pouco falador, mas bom contador de histórias quando se reuniam à tarde. Também era muito crente. «Todos os dias tínhamos de ir ao campo a trabalhar. Menos ao domingo, que íamos à Missa à paróquia de Bekamba, a mais de dez quilómetros. Durante cinco anos, cada domingo, caminhava atrás do meu pai rumo à paróquia, e ele dizia-me sempre que Deus, do Céu, cuidava dos campos para que pudéssemos ir à Missa. E a verdade é que nem os pássaros nem nenhum outro animal entravam nos nossos campos nesse dia.»

A fé que o seu pai tinha foi uma influência essencial para que ele acabasse por dedicar a sua vida a Deus. Há seis anos que o faz na pequena localidade de Toukra, numa região semidesértica entre N’Djamena e Kundul. Antes da construção do Colégio São Francisco Xavier, Toukra estava habitada tão-somente por umas centenas de pessoas. Hoje são cerca de 10 mil habitantes, e o colégio teve muito que ver com isto. «A educação católica no Chade está muito bem valorizada. Tem muito bons resultados. E nós, concretamente, os Jesuítas, temos fama de educar bem os rapazes e as raparigas.» A zona é muito pobre. As pessoas vivem da agricultura ou da criação de gado, e alguns vão trabalhar para a cidade – maioritariamente os homens –, ficando na povoação as mulheres com os filhos. O ambiente físico é duro. O calor até fere e não há árvores nem água por perto. Os habitantes formam uma comunidade por acabar, de gente recém-chegada que mal se conhece. O colégio, que parece um oásis no meio deste deserto, tem mais de 1300 alunos matriculados, dos 4 aos 20 anos, organizados em vários edifícios com salas pequenas de telhados de metal e um par de janelas, um armazém para material básico e ferramentas, refeitórios, enfermaria, biblioteca e um espaço habilitado para a ginástica artística.

cam04O colégio São Francisco Xavier, que parece um oásis no meio deste deserto, tem mais de 1300 alunos matriculados, dos 4 aos 20 anos (Foto: Sylvia García)

 

Uma mudança de mentalidade

«Gosto muito de desporto», diz Camille. «É bom para os rapazes e para as raparigas. Se fazem desporto, encontram-se fisicamente bem de saúde para poderem estudar.» No São Francisco Xavier, o desporto é essencial como fonte de motivação para que muitas crianças que não tencionam estudar ganhem ânimo. Camille conta com a ajuda da Fundação Ramón Grosso, que criou no centro escolas de futebol, basquetebol, judo, andebol e ginástica artística. A organização, criada pelos filhos do ex-futebolista [e treinador espanhol Ramón Moreno Grosso (1943-2002)], dedica-se a ajudar as crianças com deficiência e quem vive em risco de exclusão social. No colégio, além dos projectos desportivos, construíram quatro poços – e repararam outros dois – que dão água potável tanto a crianças e professores como aos vizinhos.

«Quando as meninas descobriram que existia a ginástica artística, para elas foi uma revolução.» O próprio Camille desconhecia este desporto até que viu um grupo de raparigas a praticarem-no quando entrou num polidesportivo de Madrid (Espanha), durante o Campeonato Internacional de Ginástica Artística, convidado pela treinadora Sylvia García. «Teve um grande impacto em mim. Perguntei à Sylvia se as minhas meninas no Chade poderiam fazer o que estavam a fazer as suas. E ela respondeu-me que, embora difícil, íamos tentar.» A tentativa transformou-se em realidade, e actualmente o colégio conta com um clube de ginástica artística composto por cerca de 70 meninas, que não têm nem as instalações nem o equipamento nem os técnicos de que gostariam, mas que não pára de crescer graças ao empenho dos seus criadores e à vontade das jovens ginastas.

«Este desporto implica fazer coisas muito difíceis, como dar piruetas ou saltar obstáculos. Uma aprendizagem que capacita estas meninas para superarem dificuldades e lhes abre a mente. Dá-lhes aptidões para enfrentar todo o tipo de desafios contando com o apoio de outras pessoas.» Nem Camille nem Sylvia esperam que estas meninas acabem por ser ginastas profissionais. «Ninguém vive do desporto no Chade, salvo os que vão para fora», explica o jesuíta, que se conforma que seja uma fonte de motivação para estudar outras disciplinas, assim como uma possibilidade para viver novas experiências. Como parte do projecto, algumas das alunas viajam com o sacerdote e a treinadora para Espanha. Durante a sua estada, recebem formação de treinadores profissionais juntamente com ginastas espanholas e convivem com outras famílias. Para Grace Funaya, uma delas, a experiência teve impacto. «Vem de uma família muito pobre. No ano passado, quando fizemos as provas no colégio para saber quem tinha qualidades físicas, foi seleccionada. Durante o ano anterior estava bastante mal com as notas e costumava estar muito apática. Mas quando voltou da sua experiência em Espanha, mudou completamente. Não parava de contar aos seus familiares e aos vizinhos do bairro o que vivera. No ano seguinte, tirou das melhores notas. Estava completamente transformada.»

Há uma pergunta com que Camille se confronta de vez em quando. Isto do desporto vai servir-lhes realmente para alguma coisa? A ginástica envolve um importante desgaste físico, têm de comer bem e descansar em condições para recuperarem. E de uma menina no Chade espera-se que faça a comida quando volte da escola e se ocupe de outras tarefas domésticas. «Na minha família, as mulheres não estudaram», explica Camille. «Na minha aldeia, são poucas as que foram à escola. Casam-se muito jovens, sofrem problemas de saúde por causa da ablação do clitóris e têm muitos filhos. A maioria das mulheres tem um papel secundário na minha sociedade. Trabalham muito e não têm direito a ter a palavra. Quero mudar tudo isso. Estou convencido de que as mulheres chadianas poderiam cuidar melhor dos assuntos sociais, económicos e políticos do meu país.» Este é o sonho de Camille, que as meninas que passem pelo Colégio São Francisco Xavier sejam melhores mulheres na sociedade chadiana de amanhã. E está a tornar-se realidade.

 

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